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domingo, 28 de junho de 2015

SAUDADE AFRICANA - Manuel Coutinho Nogueira Borges

EM MEMÓRIA DE UM AMIGO QUE PARTIU HÁ 3 ANOS
Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória":
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Onde está a África da minha saudade que conheci quando ainda não sabia que o futuro nunca é o que sonhamos?

África tão longe e tão longa que a recordação parece não ter contornos e o tempo passado permanece em cada dia que a mágoa nos aleija a alma. Acarto comigo um fardo de angústia que me isola no meio de muita gente, aquela solidão feita da repugnância do que se ouve e vê, da ingratidão que não se merece, da violência dos gestos e das palavras, da profanização sacralizada como se, na vida, só valesse o exponencial de todas as manhas.

É na invocação africana que se me diluem a podridão envolvente, a incapacidade da rotina, os olhares mal encarados, a indiferença das bocas fechadas.

Onde está a África dos meus clamores, das lágrimas escondidas nas sombras das noites de escuta?

África da surpresa por amigos esventrados, estendidos nas caixas dum Unimog ou de uma Berliet, e eu, com o seu fio de ouro nas mãos, sem articular uma frase, garganta presa pela afonia, estômago à beira do vómito, a fugir de ver o sangue e os rostos desfigurados, e os camuflados cheios do esterco da morte inglória, e as botas furadas pelos restos do chumbo, e o cérebro tomado por agulhas a picarem-me por todo o lado, por tudo que é corpo e consciência, e a olhar em meu redor sem uma luz na noite a ensinar-me o caminho, sem um som no fim da terra vermelha para me provocar o andar, sem (meu Deus!) uma esperança de que os mortos inocentes pudessem renascer para o meu convívio.

Onde está a África das cantinas no esconso da selva, das trovoadas e das chuvas apanhando-me nos descampados da savana, das queimadas fantasmagóricas nas noites despertas, perscrutando as curvas e os trilhos da traição, dos luares arrebatadores contemplados por entre os mosquiteiros já gastos pelo uso de muitos rostos, os uivos das hienas, atordoadas pelo cio e pela fome, arrepiando-me todo, acelerando o coração, alagando-me de suor, puxando a G-3, aconchegando o caqui, retesando os nervos com o dedo no gatilho?

Onde está a África das manhãs de maresia nas praias de todas as bandeiras azuis, sem ventos nem garrafões ou ossos de frango nas areias; praias tão quentes e tão finas que até parecia que um homem as pisava pela primeira vez, as suas águas tinham lábios de espuma que nos beijavam sempre em ternuras sem fim, corais como conchas vivas de um sonho irrepetível; palmares enormes como naves de catedrais góticas por onde o sol entrava, coado pelos vitrais da folhagem tão fresca, resplandecente e pura como a virgindade de uma criança?

Onde está a África das presunções fardadas, das madrinhas de guerra, das filmagens da Televisão com «um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de propriedades», dos dias de São Vapor com cubas libres e «quem me dera regressar no Pátria!», dos calendários de mulatas nuas repletos de cruzes nos dias já passados, da obrigação de atravessar rios em almadias à procura de esconderijos de armas em ilhas paradisíacas, dos Postos Administrativos onde os sipaios nos deitavam sorrisos pepsodentes, dos funerais com danças de despedida e dos bifes de antílope a enfartaram barrigas vazias de tanta ração de combate?

Onde está a África das noites estreladas num céu tão belo e tão esmagador que dava vontade de ter asas para voar para a lua redonda como uma bola de cristal; noites de ritmos endiabrados, sensuais e espasmódicos, que o sangue fervia nas veias e rejubilava nas têmporas?

Quando o dia clareava e o fogo redondo subia na terra, um feitiço nos ludibriava com a ilusão de paz na vastidão da selva.
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
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sábado, 15 de março de 2014

A PROMESSA CUMPRIDA

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A velha urbe flaviense recolhia-se às abas da Serra Amarela, vinda das bandas do Gerês, elevada nas redondezas do Quartel, protegendo a veiga produtiva, até se perder em domínios castelhanos. Fazia um frio de rachar e a neve branqueava as agulhas daquela.

Era uma cidade-quase-vila, de velhas pedras lambidas pela história e pelas águas do Tâmega, com uma ponte onde não se apagavam as marcas dos tropéis romanos, um castelo esquecido de rivalidades fronteiriças, invernos tristes e desconfortáveis, ruas desertas e janelas sem rostos. Tinha, contudo, o delicioso aconchego de província, as gentes festejavam os olhares e fraternizavam-se na proximidade. Os mais afoitos, quando os serões televisivos nacionais ou espanhóis não convidavam a ficar em casa, juntavam-se nos Cafés e no único Cinema. Cidade simples, sem afectações cosmopolitas, todos se conheciam a ponto de o carteiro distribuir a correspondência sem olhar para os números de polícia. Estranhos eram os militares que, ciclicamente, desciam dos comboios a abarrotar, acartando malas e garrafões, para tirocinarem na especialidade de caçadores, partindo, depois dela, anónimos e espaçados, para os barcos da lisboeta Alcântara, o destino marcado nos matos africanos. Mas, enquanto permaneciam, depois de um breve acomodar, misturavam-se satisfeitos na convivência civil, recebidos com carinho pela idiossincrasia local e a compreensão dos ditames que os obrigavam. O movimento comercial gerado era mais uma consequência do que uma exclusivista razão de interesse. Às vezes, ficavam raparigas à espera de carta, mas não se incomodavam muito quando elas não vinham porque havia sempre comboios a chegar à estação. Vendiam-se, da vizinha Galiza, caramelos e bebidas, roupas e perfumes que não precisavam de trilhar os desvios do contrabando; as gentes, de ambos os lados, cruzavam-se como se do mesmo mapa fizessem parte que a raia abria-se aos rostos e familiaridades acostumadas.

Luís, enfiado na cama, olhava, pelo janelo gradeado, a chuva repetitiva. Mexeu-se no beliche e aconchegou os cobertores. Precisava de dormir pois ainda teria um turno para fazer, mas, o sono não pegava. Na Casa da Guarda, o silêncio só era quebrado pela tosse do Sargento Féteira. Quantas noites destas, sem pregar olho, teria de passar nos anos que lhe faltavam para regressar à vida civil? África esperava-o. África, para ele era aquilo que o Aspirante lhe explicava na instrução, o que ouvia falar aos que já por látinham passado o mato, as picadas, as emboscadas, os cercos, os tiros, os corpos estropiados, o ter que matar para viver.

O Sargento voltou a tossir, parecia que lhe saltavam os bofes.

O que lhe convinha era a sorte do Ribeiro que, ainda no último domingo, entre uns copos, lhe voltara a repetir a mesma conversa: apanhara com duas granadas nas pernas e nenhuma rebentara. Caramba!, o tipo não andaria com aquela ladainha toda só para impressionar e se armar em valente? Ele nem era nada de especial, conhecia-o bem, uma vez até lhe veio pedir ajuda para uma questão antiga com o Zé da Formiga, que andava sempre a ameaça-lo que um dia lhe cortava o pescoço. Se calhar nem um tiro dera e para se enfatuar arrazoava aquilo.

O Sargento tossiu novamente, agora mais demorado, pareciam arrancos dos pulmões.

Coitado, o homem estava todo roto. Ele também dizia que as madrugadas africanas é que o puseram assim, o nevoeiro de lá era tramado, metia-se nos ossos e dava umas febres que até podiam matar. Havia de perguntar ao Ribeiro como era isso do cachimbo ou cacimbo, toda a gente o nomeava. O que ele mais queria não podia afiançá-lo: voltar vivo. Se morresse, que fosse num instante, sem dar tempo para se aperceber; assim: “um tiro, tau, e já foste”. O Aspirante Correia, que era da sua terra e lhe dava boleia aos fins de semana, bem lhe dizia para não ser pessimista e pensar em gajas boas para se distrair, sem se amarrar a nenhuma, e que haveriam de regressar os dois com os amigos e a família a botarem foguetes. De uma coisa ele não desistiria: viesse lá quem viesse, naquele corpo só poria a pata quem se antecipasse na sorte ou no fogo. Custava-lhe deixar a Mãe que passava a vida a dizer: «Mal tu partas, ponho luto e só o tiro quando regressares.» Pareceu-lhe que a chuva entrara na caserna e lhe inundava os olhos. Puxou o lençol sebado e limpou o rosto. O Pai não lhe custaria tanto, sempre bêbedo, dando mau viver, a entrar em casa aos berros, gritando que estava farto de trabalhar sem que o dinheiro chegasse, que o que gastava em vinho era um migalho de nada.

O Sargento teve outro ataque de tosse, aquilo dava-lhe como se um relógio despertador lhe marcasse os tempos de descanso e de tosseira.

Quando viesse também teria aquela tosse como a esgana de um cão? O Féteira não era mau tipo, um chico sempre com os regulamentos na boca, a ameaçar porradas a torto e a direito, aos berros de «vocês não me fodam! Eu quero é chegar ao meu tempo sem problemas e, depois, mandar-vos todos p’ró caralho! Ouviram ou querem que vá ao micro?!».

Mas o que lhe importava, agora, era a sua próxima licença de Natal, comer o bacalhau e as rabanadas da Mãe, mesmo que o Pai só pedisse vinho. Quem sabe se seria o último? Em África, diziam, não havia Natais nem nada, aquilo era sempre igual e tinha que se estar sempre com os olhos abertos para não se ser apanhado com as calças na mão.

O Cabo da Guarda nem precisou de o chamar. Mal o viu entrar no cubículo, levantou-se, vestiu o capote, enfiou o capacete, pegou na G-3, esperou que os outros se arranjassem e lá foi para o seu terço de sentinela. O bofetão da madrugada devolveu-lhe a realidade. Bateu várias vezes com as botas no chão, esfregou as mãos, bufou-lhes, e, trocada a senha, plantou-se na guarita. A manhã estava vai-que-não-vai para nascer, o rascunho do sol ganhava definição, já havia barulhos e vozes domésticas nas casas rentes ao muro. Sua Mãe, a esta hora, devia estar a preparar-se para ir ao Corgo lavar a roupa; o Pai, esse, só pelas sete costumava terminar a cura da borracheira para a reiniciar com um naco de broa, uma fatia de presunto e um copo de aguardente que a Tia Francisca do Alto – secular e durázia governanta da quinta em que ele, por intercessão dela, trabalhava aos dias – lhe dava, às escondidas dos patrões, com o carinho condoído por alguém que substitui o filho que não se teve.

Luís, no seu posto de inútil vigilância, pedia que o sol se apressasse e sonhava com o dia da sua licença de Natal. Ele ignorava que aquele seria - felizmente que ninguém sabe quando é – o seu último Natal.

Luís morreu, num dia de Novembro de mil novecentos e sessenta e oito, na serra Mapé, ali onde a Frelimo não suportava a tropa do puto. O destacamento de que fazia parte, incumbido de subir a serra para dar protecção aos fuzileiros que terminavam a nomadização, descia para Macomia com a miragem de uma semana de descanso na praia de Wimbe. Uma bazucada não lhe deu tempo para chamar pela Mãe. Morreu
como quisera: “tau, já foste!”. A granada embateu no ponto em que a porta se ajusta ao tejadilho, ricocheteou para o interior da cabina da Berliet e, num estoiro de fim do mundo, desfarelou-os, a ele e ao condutor, enquanto o resto da coluna, saltando das viaturas, despejava carregadores e filhos da puta à toa numa resposta de desespero e raiva à emboscada. Foi enterrado, a aguardar vez para um calado regresso em urna de chumbo, no cemitério de Porto Amélia, debruçado para o Índico. Não soube se a serra Mapé era Amarela e se o Natal africano tinha frio e neve.

O Aspirante Correia, já Alferes, enquanto o acompanhava, sentado no Unimog a cair aos bocados, ao lado da urna, olhava a medalha que ele lhe entregara, numa premonição inocente, para «no caso de eu marar, veja se a entrega à minha Mãe».

Cumpriu o que lhe prometera. Numa tardinha de Abril, quando os cavadores se recolhiam para o caldo e o apresigo, viu, da janela, como um dó, o luto da Silvina com um caneco de água à cabeça. Hesitou outra vez - há dias que se consumia na irresolução -, mas, queria livrar-se daquele carrego. - «Tem de ser hoje!». - Saiu de casa e interrompeu-lhe o caminho.

- D. Silvina – pigarreou -, tenho-me esquecido de lhe entregar uma coisa que o Luís me pediu.

- Nem a quero ver, senhor – disse-lhe numa voz enregelada, deixando-o paralisado pela rapidez da compreensão do seu intuito. - Agradeço-lhe a sua boa vontade, mas já nada adianta para a minha vida. – Os olhos não tinham lágrimas, só um frio caliginoso. - Enterre-a ou deite-a fora, dei-lha em vida não a quero na morte.

- Compreendo-a - gaguejou com receio de se abater - , mas tenho que cumprir a promessa. – E empolou a palavra num apelo a escrúpulos religiosos.

Silvina olhou-o num instante que lhe pareceu implorativo (não decifrou se a água que lhe cobria os olhos escorria do caneco ou lhe nascia no peito), abriu a mão direita e disse: - «Deixe-a ver.» Meteu- a no bolso do avental e retomou o andar.

A medalha - nunca o esqueceria - tinha uma imagem da Senhora da Graça e no verso uma frase: «Oferece a tua Mãe.»
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória
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quinta-feira, 28 de março de 2013

O PECHE

Manhã cedo, o sol a erguer-se, já se ouvia a chiadeira do carro de bois do Peche que parecia vir da lonjura, acordando o silêncio da terra e despertando as gentes para a faina das vinhas. Era um ruído agudíssimo, de ferro oxidado, que aumentava à medida que se aproximava. Os cães vinham ladrar aos quintais, os galos cantavam nas casinholas, a neblina ressumava sobre a concha de Remostias, o vale de Abraão era ainda uma sombra, os caminhos entoavam as primeiras tosses, os homens esperavam os Feitores no Paredão, mastigavam-se as côdeas do dia anterior, a lamparina da Capelinha de S.Gonçalo continuava a cumprir a devoção dos vivos, abriam-se os portões, as lareiras expeliam os primeiros fumos e o perfume matinal alegrava os acordares.

O Peche vivia – é um modo de dizer - ali para os lados do Poeiro, num mísero saguão, paredes meias com a loja do Lindo – assim chamava ao animal –, partilhando cheiros e tecto, já que as camas, sendo ambas de poácea seca, tinham - ao menos isso - a diferença da condição. O Peche foi um grande carreiro do Douro. Ainda hoje sinto uma saudade tão forte que parece que o estou a ver: meão, boina esburacada como se tivesse servido para um qualquer caçador experimentar a pontaria, faces com sulcos de necessidades escondidas numa espessa barba cinzenta, um estrabismo acentuado (mirolho chamavam-lhe os velhacos), sempre com as mesmas calças de cotim coçado seguras por uma guita, as botas compradas, há um ror de anos, numa mal lembrada festa da Santa Eufémia. Mesmo no seu aviltante viver, tinha um modo tão cativante que até sonhei ser rico para com ele dividir um palácio onde nos sentássemos à mesma mesa. Foi ele que me despertou as primeiras revoltas pelas injustiças do mundo e a repulsa contra a pobreza mais deprimente. Quantas vezes, mal o via, me questionava porque dá a sorte, a uns, tudo o que querem e, a outros, nada.

Era o tempo do medo e da fome que não poupava nem os que tinham mais nem os que tinham menos - agrilhoava na proporção. O medo vinha de todo o lado, uma coacção que se sentia no bafo dos dias, na oralidade encadeada das estórias da submissão, um fatalismo que não concebia perguntas porque quem mandava não tinha rosto, só o nome amedrontava, e sabe-se que os grandes medos nascem na reputação. A fome, mais do que uma precisão do estômago, era uma indignidade que humilhava qualquer carácter, uma urgência de sustento que, não matando, moía a qualidade de se ser gente e dramatizava a repartição por diversas bocas; era a impossibilidade do ter e a indigência do ser.

Onde começava a rampa de S. Gonçalo, esburacada como se atingida por um obus, o Peche parava o carro, destravava-o por inteiro, colocava-se à frente com a mão direita na aguilhada e a esquerda na ponta direita do bovídeo, estimulava-o com carinho e um ou outro ligeiro toque com o ferrão, e o Lindo ganhava lanço, afocinhava até o chão, levantava o jugo, para só parar, com a sua pipa ainda vazia amarrada por cordas de vários nós, junto à porta do armazém em que se ia realizar a carregação. O carreiro chegava-se a ele, fazia-lhe festas, deixando-o lambuzar-lhe as mãos, «Meu Lindinho, vou dar-te de comer, sim?», dobrava a palha, metia-lha na boca, e o seu amigo ruminava com os olhos a piscarem. Nunca, ao Peche, lhe escutaram um azedume, um ódio contra a vida. O mutismo era o seu estado natural, falava por obrigação, e o seu olhar, apesar de divergente, tinha o determinismo da privação. O Lindo, mais do que o interesse da sua sustentação ou o justificativo da sua profissão, era o substituto das ausências humanas, a companhia que lhe recreava a vida.

Quando as portas do armazém se abriam, preparadas a balsa e a torneira, o vinho jorrava do tonel como sangue de veia explodida. O meu Avô, sentado num pipo na perpendicular, de bengala ao lado, fumando tabaco de onça, conferia mais com a presença do que com os olhos. Nesse tempo, os lavradores eram mesmo lavradores, viviam do que dava a terra e por isso a fiscalizavam com preocupação sobrevivente; nada lhes escapava do seu trato: a escava, a poda, a erguida, o herbicida, a cava, a adubação, o sulfato, o enxofre, a redra e a esfolha. Calculavam, com o saber da experiência, as (im)previsões do tempo e da vida; eram escravos dela e, mesmo que a saúde lhes dificultasse a passada, isso não lhes condicionava a exaltação dos montes e só deixavam de os percorrer e amar quando a morte os tolhia.

Carregar uma pipa, além de trabalho arrastado, era vender as preocupações e os suores de um ano, às vezes de muitos. Atestavam-se os almudes, até ao orifício da correcta medição, com as canadas bem cheias, e apontavam-se com quatro riscos verticais e um oblíquo como quem contava jogos de sueca. Depois, subindo pelo escadote, um homem despojava-os num enorme funil introduzido naquela, num vai e vem monótono. O fartum espalhava-se pelo caminho e infiltrava-se pelo soalho da casa numa antecipação inebriante de vindima. Os que passavam, rondando a porta, aproximavam-se e cumprimentavam com um brilho apelativo no olhar. O primeiro a provar era sempre o Peche. Tirava a boina, saudava à saúde dos presentes, escorripichava o quartilho, estalava os lábios de satisfação e limpava-os à manga da camisola. Era apreciador, embora, algumas vezes, abusasse na avaliação... Entretinha-se com uma tira de bacalhau salgado, num desenfastiado ougar. Os outros despachavam-se com a pressa de quem desejava repetir, alguns indo, para o fundo da rampa, acenar, pateticamente, a qualquer automóvel que, raramente, descia para a Régua ou subia para Santa Marta. Havia um, o Manuel Manco, arrastando-se, como um lagarto, de joelhos dobrados guarnecidos com umas patelas de borracha e umas solipas nas mãos que, ao terceiro ou quarto caneco, disparatava, encostado ao muro sobranceiro à estrada, numa imitação bronca de banda de música: «É a banda de S. Cipriano!», arremedava ele, cravando a manápula esquerda no sovaco direito e levantando e descendo o respectivo braço. Dava, então, um concerto peidorreiro. «É o trombone!», moinava, enquanto imitava os pratos com uma guturalidade de momo.

Fiscalizava-se o enchimento do casco batendo-se-lhe, de tempos a tempos, com uma chave de apertar, e, quando testo, martelava-se um batoque envolto num pedaço de serapilheira. O Peche verificava a segurança das cordas e das estacas, incentivava o Lindo, soltava-lhe o freio, sentava-se na traseira com as pernas suspensas, e lá iam eles direitinhos à Casa do Comissário que comprara o vinho. Até ele voltar, fechava-se o armazém que outras tarefas aguardavam. Eu corria para o fundo do quintal e só parava de o ver depois da curva do Fial, a chiadeira num eco imperceptível.

Numa manhã de Maio, de fértil Primavera, encontraram-no, lavado em lágrimas, encolhido na ombreira do seu tugúrio. Quando acordou, não sentiu o Lindo; chamara-o, mas nada. Mal se ergueu, viu-o retezado na palha humedecida, rodeado de excrementos. Gritou, mas ninguém o ouviu; ele costumava despertar com a lua ainda em demora. Foram os primeiros cavadores, vindos do Ribeiro, que o encontraram no pranto de desespero. Passaram palavra e combinaram enterrar o animal num declive do Toimil entre uns castanheiros que rodeavam o poço. Ao fim da tarde, mal despegaram do trabalho, uma mancheia de homens içou o animal para a caminheta que o Zeferino emprestara. O sol ainda brilhava no vale de Jugueiros, apontando a sepultura. Esperaram um bom bocado até que a enorme vala - que outras boas almas se haviam prontificado a abrir – ganhasse a largueza e a fundura necessárias. Quando empurraram o corpo do Lindo, inchado como um odre, o Peche caiu redondo. Os presentes ficaram sem o que dizer e fazer; alguns não impediram uma lágrima, outros sentenciaram uma bebedeira. Solevaram-no com cuidado e berraram-lhe o nome até o rosto desfigurado mostrar a sua normalidade estrábica.
Depois disso, o velho carreiro, de mãos nos bolsos, caminhar de títere e olhar distante, arrastava-se, sumido, pela aldeia. Falava sozinho, como se o seu boi ainda o levasse na chiadeira da sonolência, mal respondia a um cumprimento e só comia o que lhe davam. Nunca pedia, embrulhado na resignação, mas muitos não lhe negavam uma ajuda. Andava dias e dias fora de Lobrigos, de feira em feira, à procura de um boi igual ao seu, que nunca encontrava e, que encontrasse, nunca poderia comprar, regressando sempre de olhos alagados. Diziam que enlouquecera, deixara de fazer a barba nas manhãs de Domingo, os joelhos ao léu nas calças de cotim, camisolão desgolado, a boina num benairo de sebo, os polegares saídos das botas. Um dia, alguém o chamou e o vestiu com umas roupas dispensáveis. Houve quem se risse, chamaram-lhe doutor e faia. Por pouco prazo. Retiraram-no da palha e enterraram-no, por misericórdia, no cemitério do Espírito Santo, numa tarde de Janeiro, quando a luz do dia se escapava por entre os socalcos. Quando lá vou falar com os meus, bem queria saber da sua campa. Já procurei e perguntei por ela, mas ninguém me sabe dizer. Nem uma palavra, nem uma letra. Sei-o ali, abandonado num canto qualquer, a dizer-me que a grande riqueza das pessoas é a boa recordação que deixam.
- M. Nogueira Borges - LAGAR DA MEMÓRIA, (Aos meus mortos e aos meus vivos).

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*Manuel Coutinho Nogueira Borges - escritor e poeta do Douro-Portugal: Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.

Clique nas imagens para ampliar. Foto original do Peche cedida por José Alfredo Almeida. Edição/actualização de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013.  Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 27 de Março de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

OLHAR

Os meus olhos são um rio ressequido,
Em cada Verão de mangas curtas,
Que se enche em cada Inverno de tristeza.

Os meus olhos são um grito,
Aflito,
Que entoa em cada casebre
Carcomido
De Pobreza.

Os meus olhos são um rio de muitos barcos
Que navegam como revoltas e enganos,
Rectas e curvas feitas gráficos
De dias,
De meses
E de anos.

Os meus olhos são um rio de margens
Desenhadas pelas sombras das saudades,
Feitas memórias de viagens,
Umas realizadas,
Outras sonhadas.

Os meus olhos são um rio de desilusão,
Sofrida,
Dorida,
Mas sempre com uma esperança
- Quimera perdida -
Igual à de uma criança
Que ainda desconhece a mentira.

Os meus olhos são um rio de cansaços,
Repleto de fastio e alguns embaraços.
Sós como os choupos do esquecimento,
Sós como os vinhedos em Dezembro.

Os meus olhos são um rio de pensamentos
Diferentes,
Contraditórios,
Violentos,
Mas suaves como na Primavera os rebentos.

Os meus olhos são um rio alteroso,
Conhecedor do seu nascer,
Certo do seu morrer,
Pejado de rochedos
E de medos;
Batido pelo sol ( de quando em vez ),
Um sol de bafo e de carinho,
Tão leve como a minha Mãe fez
Quando me abriu as portas do mundo
E disse: «Meu Menino...»
Com uma voz bem lá do fundo,
Um sorriso de amor e de calma
E um alívio na alma.

- De M. Nogueira Borges* 
*Pode ler M. Nogueira Borges neste blogue e no blogue "ForEver PEMBA". Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 5.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Está sepultado em Cambres - Lamego. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Diário (de Lourenço Marques - Página de Cabo Delgado), Notícias (de Lourenço Marques), Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março de 2011 na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar. Atualização de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Lagar da Memória na Feira do Livro de Stª Marta de Penaguião

CONVITE para 24 de Julho, pelas 21 h em Santª Marta de Penaguião.
Alguns trechos do "Lagar da Memória" de M. Nogueira Borges.
"Lagar da Memória" na Editora "Mosaico das Palavras".
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Biografia
Nascido em São João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, uma das “fronteiras” que une os socalcos durienses às fragas transmontanas, M. Nogueira Borges estudou em Lamego e no Porto, Mais tarde, já em Coimbra, matriculado na Faculdade de Direito, conheceu as praxes e as serenatas, a tradição lendária das “repúblicas” e as trovas de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira. Ligou-se à Gazeta de Coimbra e, esporadicamente, à revista Capa e Batina.
Mobilizado para a guerra colonial, e colocado em Moçambique pelo lápis amanuense, colaborou na Voz da Zambézia, Notícias da Beira, Revista Nova e Diário de Moçambique.
Regressado de África, tornou-se trabalhador bancário. Logo, publica, em edição de autor, Não Matem a Esperança, obra de fidelidade às origens, fidelidade que prosseguiu nas páginas dos semanários Miradouro, Voz de Trás-os-Montes, Arrais e Notícias do Douro.
Foi co-autor das obras Imagens da Nossa Memória e A Arte Pela Escrita Três, editadas pela Mosaico de Palavras Editora.


Sinopse
“As páginas que se seguem são recolhas de alguns anos de vida guardadas no Lagar da (minha) Memória. Nasceram, como as uvas da PÁTRIA DURIENSE, de cepas de várias castas, idades e lugares. Umas têm o benefício da Região Demarcada, outras, os transcursos citadinos e africanos. Nenhuma delas rejeito: nem a doçura amadurecida, nem o amargo fora de época” (M. Nogueira Borges, in “Apresentação”).
É a vida do Douro, as vidas à volta das vinhas e dos campos, dos fraguedos e dos socalcos, um cheiro a lagar ubérrimo e redentor que salpicam o leitor ainda fiel às águas de uma pátria sempre rude para aqueles que não a foram abandonando. Tal como o autor.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

TEMPO MOÇO

Deitados na caruma, de olhos fechados, sentíamos os voos das pegas–azuis, os estalos dos pinheiros e, ao longe, na ondulação dos montes, os zumbidos dos pulverizadores.

Não sei quantos anos tínhamos, talvez dezasseis, talvez dezoito ou talvez aquela idade em que não se sabe, ainda, contar os anos.

Da pequena cachoeira, a deslado de um renque de salgueiros (pareciam salgueiros...), vinham os ralhos das mulheres que lavavam a roupa, misturados com a gritaria da canalha entre barrigadas na água e correrias pelas margens.

Flutuavam aromas de Verão, o cheiro a terra e a flores silvestres entranhava-se nos corpos. Ficávamos, assim, colados ao restolho, cansados da subida, à espera que o comboio nos acordasse.

Quando o pouca-terra-pouca-terra da via reduzida atravessava a ponte, sentávamos-nos a ver aquilo: carruagens esverdeadas, andar bocejante, fumaradas de cigarro, brinquedo de cascata sanjoanina. Os nossos cabelos eram fios de sol e trocávamos olhares tão ternos como a lua contempla o mundo nas noites quentes de Agosto.

Corríamos os bardos à cata de ninhos de melros, e havia sempre, ao entardecer, um rouxinol que cantava para os lados da ramada que sombreava o poço.

Tudo era verdadeiro, a amizade existia mesmo e ninguém invejava ninguém.

Tínhamos a novidade do princípio que nunca se inicia nem acaba qual a sede num sonho.

Trepávamos ao pinoco de cimento, que comemorava o ponto mais elevado do monte, e dali abarcávamos uma vista delirante: medonhas penedias forradas por simétricas fieiras de verde tão a pique que parecia impossível um homem conseguir lá botar sulfato; estavam mesmo junto às nuvens, numa adoração telúrica que nem sabíamos se era herética ou sagrada, enquanto o comboiozinho, ao longe, pronunciava uma curva larga, em câmara lenta, pedindo que algum santo o empurrasse.

Ignorávamos o ódio que é feito daquele martírio de linguagem escolhida para a ofensa gratuita, expressa por olhos esbugalhados para perturbar a boa fé. As mãos das pessoas tinham calos e terra nas unhas, as barbas faziam-se aos domingos de manhã e o Padre madrugava com o sino da Capela a interromper os sonos.

Ecoavam os cânticos das aleluias, o toque dos santos, a adoração da hóstia e, depois, os homens iam, abençoados, de sacho ao ombro, desviar as águas para as hortas.

Líamos, às escondidas, o Crime do Padre Amaro ou Andam Faunos Pelos Bosques, enquanto as moçoilas, de caneco à cabeça assente em rodilhas, mostravam os vestidos de chitas floridas; as Mães, cansadas, catavam ganapos; os homens, nas tabernas, jogavam o monte ou o sete e meio, mastigando tabaco de onça e escarrando no chão térreo; os leilões de cravos, cestas de fruta e galos de crista vermelha fomentavam vaidades aldeãs em nome das festas de Santa Bárbara; os bailaricos de poeira, suor e olhares de soslaio alimentavam rivalidades ciumeiras.

Naquele tempo desconhecia-se a morte. Ela estava cercada por quatro paredes, no canto mais afastado da terra, e não gostávamos daqueles toques metalóides dos sinos da Igreja quando uma multidão vestida de negro se arrastava, estrada fora, como uma cobra do rio.

A morte era um eco difuso, pouco audível, que a noite, por vezes, avivava em receios de fantasmas. Depois, adormecia com a sensação de que me faltava alguém.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

segunda-feira, 21 de março de 2011

O SILVA

Conhecera-o em Mafra, no C.0.M., onde, durante meio ano, nos sacrificámos para termos alguma hipótese de escolher a futura colocação num quartel próximo de casa. Fazíamos o que nos mandavam, mesmo que isso nos violentasse, prolongávamos o esforço para lá dos limites, decorávamos os regulamentos como quem engole a repugnância, manuseávamos as armas com a presteza dos autómatos e desmanchávamos as culatras com a troça de um desfastio.

Encontrámo-nos em Chaves para formar Batalhão, embarcámos no mesmo barco para Moçambique e separámo-nos em Nacala. Durante meses trocámos SPM, mas, repentinamente, os seus aerogramas cessaram.

Um dia, num desses dias em que o calor húmido cola as roupas à pele, encontrámo-nos numa cidade construída no meio dos pântanos. O abraço teve a alegria de uma criança quando lhe reaparece o brinquedo preferido. No café, repleto de ventoinhas de tecto, de fumos de cigarros e conversas agitadas com pressa de recuperar os afectos interrompidos, estendemos o reencontro. Continuávamos, afinal, os mesmos: sedentos de regresso e de paz, contrariados na guerra e desaproveitados na vida, sem vontade de matar mas obrigados a fazê-lo para não morrer, a rotina do estupor a tapar-nos os horizontes; vivíamos de recordações, os passeios a Lisboa e à Ericeira para vermos as coxas das miúdas a atirarem-se aos cadetes de Mafra; os bonecos do Franco no Sobreiro, os escuros corredores da EPI ensombrados pelos fantasmas das batalhas de Naulila ou La Lys; os bifes do Novo Rioma, as melodias sineiras dos carrilhões, aos domingos, a encimarem a monumentalidade barroca de D. João V; os devaneios bucólicos à foz do Lizandro, as marchas na Tapada com os gamos e os veados a mirarem-nos surpresos; as saudades de Coimbra como feridas incicatrizáveis, a quietude das nossas aldeias separadas pelo eco de um berro, as bocas das namoradas sem uso; o velho do Salazar que nunca mais morre, o tempo que demora a passar, o cansaço da escrita que só apetece para a família chegada e, quantas vezes, sem saber o que se dizer.

- Por que deixaste de escrever?

- É sempre a mesma merda, depois das patrulhas só me apetece dormir. Aliás, sabia que, mais dia menos dia, me dariam um mês de descanso e que o faria aqui, sem dinheiro para ir à Metrópole. – Fez uma pausa para um gole de Laurentina. - Sabes quem morreu? O Daniel.

- Não era aquele gajo que dizia que queria meter o chico?

- Tinha essa mania, pintava-se de preto e ia sempre com granadas à cintura; rebentou-lhe uma defensiva e fodeu-se. Matou-se sem glória. Ainda está em Miteda, lá num canto, cheio de chumbo por dentro e por fora, à espera de um barco.

Um tipo esquisito, o Daniel: sorumbático, ombros fortes a rasgarem o blusão, o rosto de feições montesinas, uma reserva forçada como se a vida nunca lhe permitisse uma subtileza. Deliciava-se com a aplicação militar e constava que limpava todos os dias a bicha de Aspirante. No bar, nunca passava de meio chá com duas bolachas e, enquanto os outros folgazavam, ele ficava horas sentado a ver a televisão espanhola.

- Mas, sabes – retornou o Silva quando já passeávamos na marginal - , o tipo tinha melhorado, estava mais dócil e já se ria para os soldados. Não havia operação que não quisesse ir, confiante, «vou ali e venho já», dizia ele. O Capitão ia propô-lo para um louvor ao nível de Governador Geral. Agora, então, é que vai ser uma maravilha com o gajo já morto. E a malta do pelotão já gostava dele, sabes? Dormíamos no mesmo cubículo, jogávamos a sueca, mas nunca nos afeiçoámos. Quando vi a padiola e o tipo estendido é que senti uma coisa cá dentro que ainda hoje não consigo precisar. Pareceu-me um desperdício, um roubo, a cópia dum hipotético futuro meu, notei-lhe a ausência, que ele tinha existido comigo, que estávamos, afinal, no mesmo lugar. Tive medo e, não sei se por isso ou por ele, chorei que nem um desalmado, como se as lágrimas me desculpassem de estar vivo, entendes o que quero dizer? Uma justificação que se dá mesmo sem se ser obrigado. Esta merda é fodida. Andamos aqui todos a ver se safamos o canastro e quando morre alguém parece que temos culpa por não sermos nós.

Era ao fim da tarde quando África é uma perturbação enlanguescida. O sol, bolha de sangue estampada no horizonte, morria, lentamente, num desmaio de donzela consolada pelas carícias do mar. A noite caía cedo – como caem todas as noites africanas -, uma brisa de sirgo sensualizava os corpos e espevitava frémitos. As mulheres, de vestidos leves ou calções generosos, espalhavam perfumes e ousadias. Os homens, de balalaicas impecáveis, fumavam LM e miravam as capulanas das negras roliças. As peles tinham a cor da nascença ou da frequência da piscina. Caminhava-se num chão de vidro, os sorrisos atirados para os lados. A guerra estava longe, mesmo que fosse ali ao lado, para lá da picada vermelha, da escuridão da selva, da desconfiança das tembas. Nas esplanadas, o gelo desfazia-se no uísque ou nas coca-colas; a cerveja gelada acompanhava-se com pratinhos de camarões, ameijoas ou pedacinhos de dobrada; as faces enrubesciam, as barrigas, bem instaladas, avolumavam-se - respirava-se um ar de insolvente abundância.

- Não te choca este ambiente? Até esta paneleirice inglesa de os carros andarem pela esquerda com os volantes do lado direito me mete confusão! – exclamou o Silva. - Anda um tipo, no mato, de canhangulo em punho – prosseguiu nervoso -, sujeito a levar um tiro nos cornos, a lutar pela Pátria como dizem os cabrões, chega-se aqui e parece que nada se passa.

- Fazem um esforço para esquecer que a guerra existe. – fingi sentenciar. Eles até dizem que a guerra só os empobrece, como se acreditassem que acreditamos. Há aí tipos a fazerem fortunas. Sentem-se desobrigados e alguns dizem que resolviam isto sozinhos, falavam com a Frelimo e dividiam ao meio o poder. Nós andamos cá a complicar, a esvaziar o Tesouro para nada. Toleram-nos, acarinham-nos, convidam-nos para almoçar e esforçam-se por nos tornar importantes.

O Silva trazia o cansaço do mato que, quando longe dele, procura, mais que o ócio, o farejo da fêmea. Reparava nas raparigas com um olhar que tanto parecia uma imploração condoída como um prenúncio de vulcão prestes a explodir. Tinha o rosto seco pelas vigílias cacimbadas e pelo desejo reprimido. Só a inibição social o detinha. Mas não pretendia o sexo fácil, comprado por meia dúzia de quinhentas, sim a naturalidade de um ímpeto civilizado, a satisfação racional que lhe matasse a fome de homem e não de macho. Na Metrópole, ficara a Joana, cabelos compridos e lábios de polpa, sentada nos bancos de Direito, a ouvir aquelas secas das Obrigações, a escrever-lhe noite sim noite não, ele duvidando, às vezes, se a encontraria, que o amor é muito bonito quando a presença não se imagina mas sente. Já sabia que o verdadeiro amor é o do sangue, o único que é cego a sacrifícios e não discute contas. Jurara fidelidade, aquela promessa fogosa que a despedida longa solicita, mas omite o imprevisto.

- Já reparaste – atirou o Silva – que aqui as raparigas parece que crescem mais depressa do que lá no puto? - Veem-se aí catraias, acabadas de nascer, quinze, dezasseis anos, corpos de mulheres feitas, desinibidas e a pedir tudo! – insuflou, enquanto um sorriso concupiscente lhe envolvia os olhos.

- Acautela-te e não te deixes levar por aparências. O sonho de muita miúda que te mira é apanhar um alfereszito e amarrá-lo a um embondeiro. Então as mulatas adoram galões e camuflados. Não te esqueças que tropa é sinal de submissão – chacoteei.

- Quer-se dizer que o mais seguro é na temba...– acentuou Silva em tom desconsolado.

- Olha para aquilo! – anotei. - Andam cem cães atrás e os pais nunca a largam. O tipo é um coca-cola ligado ao cajú e ela é uma broeira que só tem corpo e passeia os livros na Escola Técnica. É só encenação, espremida não dá nada, quando abre a boca é de fugir.

- Não me importava nada de experimentar. Quem fugia, se calhar, era ela com o susto! – motejou Silva.

Dir-se-ia que toda a gente afluíra à beira-rio, baptizado por Vasco da Gama, há séculos, de Bons Sinais, já sem os vestígios da fortaleza que a história de mil e quinhentos diz ter existido em comércio esclavagista. De cá para lá, desde a ponta em que se erguia o palácio do Governador até à outra da zona da piscina, os corpos deslizavam na mornidão amansada por um cacimbo prematuro. Chamavam-lhe o picadeiro, montra das vaidades e da alcoviteirice.

Era uma cidadezinha de moradias predominantemente familiares, estilo colonial, com um jardinzinho sempre bem tratado pelos mainatos. Por si própria se fez, sem o ouro metropolitano, saneados os pântanos que não dispensavam, tantos anos depois, a pulverização diária, impregnando, pelo cair da tarde, o ar dum cheiro repelente de fenotrina. Na generalidade, os seus habitantes tinham a franqueza nascida em terras transmontanas ou beirãs, e ofereciam, nas suas salas climatizadas, copos de uísque cheios de gelo com «chim! Chim!» de sorrisos. Os arruamentos, rectilíneos, cruzavam-se como se medidos em estirador de arquitecto, os poucos prédios em altura eram uma apressada resposta à multiplicação demográfica que a guerra gerara. Visitavam-na não só a flutuação militar ou os endinheirados do Malawi que atravessavam a fronteira de Milange como se fosse a Valença Moçambicana, mas, também, os senhores do cajú, do chá e do óleo de copra, abundantes nas plantações conquistadas ao mato. Na época das chuvas, com as picadas intransitáveis, impróprias para Nissans e Land-Rovers, quanto mais utilitários, a cidade recuperava a identidade. O aeroporto, longa fita de terra batida, metade asfaltada, que permitia a escala dos friendships da DETA ou os ronceiros Dakotas com a Cruz de Cristo pintada, dava-lhe um ar civilizado.

No mato circundante ficava a temba, caniço habitado pelo diminuto proletariado negro, macuas meios indeiscentes e mulatos de desconhecidas paternidades, que, no fim do trabalho, iludiam o descanso na aguardente de cana e batucavam espíritos entre o capim. As tarimbas, noite dentro, não tinham sossego, as mulheres entregando-se, contando moedas, à febre duma juventude que despia e vestia fardas como se despachasse um desassossego. Na cantina do branco, comiam-se pernas de caranguejo e bebiam-se bazukas à sobreposse, enquanto, no alpendre, corpos suados e ébrios, se agitavam diante do gira-discos das marrabentas. Era um lupanar ao relento com o cacimbo já colado aos corpos e às coisas, o suspiro da selva insinuando-se nas palhotas que escancaravam intimidades; um alcouce de misérias, ónus acusatório de um comportamento tiranizado, a ostentar as fraquezas como macropias de heroísmo.

O Silva, atarantado pela liberdade, longe dos buracos, das rações de combate e dos tiros, pedia sempre, pelo meio da manhã, um jeep que o levava à praia e o ia buscar ao anoitecer para encher a barriga de camarão, bife de impala e cerveja que o inebriava pelo silêncio da madrugada. Cantava, então, fados de Coimbra que o Capitão do Quadro, de mentalidade miliciana, aplaudia com tosse exagerada e um (des)concerto dos presentes. Numa dessas noites, de copos avançados, Silva atravessou-se:

- E agora – disse ele –, vamos encenar uma Serenata Monumental! O Largo da Sé Velha é um mar negro de capas, calmo e trágico. Calmo, porque precede a revolta; trágico, porque não a pode concretizar. Mas, malta! - exaltando-se - a hora está a chegar! A submissão não é eterna! Tudo acaba, até a infelicidade! Virá o dia em que brancos e pretos, as raças todas se abraçarão, e o Mundo há-de ser uma bebedeira de amor!

- Alferes Silva...– cortou, tolerante, o Capitão Velasco. – Está na hora de irmos dormir...

- Meu Capitão, o sono é a morte dos que não querem gritar a vida! Peço a todos – abarcando, com um movimento circular, os que assistiam, de desfrutados sorrisos, ao serão imprevisto - que levantem os braços, assim como eu estou a fazer, agitem as mãos como se tivessem capas, e berrem um grande eferreá pela esperança!

Uns melhor, outros pior, imitaram-no.

Depois, foi vê-lo e ouvi-lo, de olhos marejados, entoar a Samaritana, o corpo estremecendo num desespero angustiado.

A noite suspendeu-se de espanto. No lodo do rio, os crocodilos despertaram; no capim, cerce aos muros do quartel, ouviram-se restolhadas de bichos; as palmeiras da marginal agitaram-se em sussurros de brisas; a lua, virgem donzela, corou de lascívia; a escuridão desvendou ouvintes com dentes de neve; as lágrimas saltaram de emoção; os corações estoiraram contra os arames farpados; as picadas, para lá do asfalto, foram percorridas por asas de liberdade; nos terreiros do mato os tambores e as marimbas pararam de tocar; os babuínos, nos galhos das baobás, deixaram de latir; as jacarandás lilases ficaram rubras como as vagens das acácias; os duendes do melungo puseram-se, estupefactos, à escuta; os grilos encolheram as capas amarelas; as cigarras pararam o estrídulo e, na caserna, uma gelada desilusão adormeceu.
Silva antecipou, em dois dias, o regresso ao Planalto, aproveitando a boleia de um Alouette para Mueda, onde apanharia uma qualquer coluna para Miteda.

- Silvestre! – berrou-me. - Dá cá um abraço e continua-me com essa missão humanitária de consolar o mulherio solitário...

- Olha que a solidão é nossa, Silva...

Foi a penúltima vez que o vi, acenando-me, enquanto o helicóptero, como brinquedo de Feira Popular, se elevava. Passados poucos dias, pelos canais de informações militares, soube que o Silva ficara na Curva da Morte quando fazia o retorno a Miteda.

Revi-o, nos porões do Pátria, o nome escrito nas tábuas que encaixotavam o seu esquife. Ao lado ia o do Daniel.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

CONTRA A CORRENTE

Pega de caras o teu desencanto,
Toureia-o no redondel da multidão,
Numa qualquer praça, num qualquer canto,
E não autorizes que te ponham a mão.
Não vendas a tua palavra
Nem a tua verdade
Nem o teu amor.
Vale mais, quando morreres,
Teres o aceno de uma flor
Do que um coro de fingidores.
Podes contar os tostões,
Uma vida inteira que seja,
Podes contar as traições,
Venham de onde menos se deseja,
Podem-te vencer,
Naturalmente,
Podem-te roubar,
Cobardemente,
Mas não te podem prender
Nem convencer
A ficares calado,
Humilhado.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" será apresentado  no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Convite e informações aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

NO CIMO DO MONTE

(Clique na imagem para ampliar)

Cheguei ao cimo cansado, alagado em suor e a garganta ressequida. Com cuspe e o lenço limpei as reticências de sangue que, ao longo da subida, as silvas tinham escrito nos braços.

Arranquei algumas giestas e sentei-me. Após a retoma do fôlego, estendi-me na caruma e deixei-me estar com as agulhas coladas à camisa a picarem-me levemente.

Olho o céu por entre as copas dos eucaliptos: sereno, dum azul-marinho sem nuvens; o sol, intrometendo-se naquelas, beija-me o rosto, tento olhá-lo, fazendo uma pala com a mão. Assim fico, não sei por quanto tempo, absorto e feliz. Ouço o esvoaçar dos estorninhos, o pio dos rabilongos, o restolhar das perdizes, os estalos das madeiras e das folhas secas, o zoar das moscas contra as quais invisto, os sussurros cavos do sopé em que a aldeia existe.

Um melro, à Guerra Junqueiro, desafia-me num voo de alvoroço. “Filho da mãe... Devias estar a ver-me há muito tempo, tens ninho perto e julgas que vou lá... Descansa bico amarelo que não te enjeito a criação...”. Inspiro o aroma dos eucaliptos a espantar agoiros de constipações inverniças, mando um grito só para escutar a resposta na largueza suspensa; umas pegas estarrecidas mudam de galho.

A toda a volta, sem um intervalo, uma mínima fenda que seja, a sólida serrania esmaga numa ansiedade de respiro. São fieiras e fieiras de vinhedos ondulando por socalcos de geometria paralela com equidistâncias traçadas a compasso, uma dimensão verde que cega, um contraste de paz e de medonho, uma escadaria de santuário milenar que termina num apogeu de obelisco como se, depois dela, só Deus estivesse para receber as promessas cumpridas. Disseminadas nesta orografia de milagre, como temperos pictóricos, casais, modestos ou solarengos, adormecem na vertigem, ligados por veios terrados de muitos passos e encontros. Onde as gentes tomaram as posses que as heranças e os usucapiões determinaram, a casaria, aconchegada ao campanário que marca as horas e clama as almas, fez-se povoado para cumprir a história: ficar sempre como se é ou transformar-se no que se pode.

Lá ao fundo, sob a transparência do calor, o rio, num S perfeito, desliza em vagar estival, cansado das fúrias de Janeiro que nenhuma barragem domina porque a natureza não se doma, respeita-se.

Viro-me a um ruído conhecido. Lá vai ele, entre postes de electricidade, ronceiro, miniatura ferroviária, curvando quase a descair, resfolegando nas subidas como cavalo expelindo vapor pelas narinas, apitando forte não vá algum distraído oferecer a sua vida a uma coisa daquelas, subindo a custo o gigantismo da paisagem, até desaparecer como um tunante das montanhas.

Começo a descida. Paro junto de uma antiga pedreira, agora um silvado. Os grilos calam-se, colho um pintor de touriga e recordo-me da lenda das facadas. É aqui que aparece o Pitonga. Morreu numa luta de navalhas com o Fragão que envelhece numa penitenciária. Diz o povo que pareciam dois lobisomens a espumarem de ódio. Porquê? Ora... porquê!... «Uns copos a mais, mulher para aqui, mulher para ali, és um corno, corno manso és tu, não és homem nem és nada, navalhas fora do bolso, e aí está a desgraça dum homem... Foram os dois por aí acima, um atrás do outro, “ladrão que te mato, não me importo de ir para a cadeia, vê se és capaz”, o Pitonga ficou logo estendido e o Fragão foi-se entregar à Guarda.» A alma do Pitonga pena nestes sítios, já houve quem a visse numa túnica de sangue; os guardadores das vinhas juram que é pelas três da madrugada, quando o sono lhes aperta e aqui vêm encostar-se, que o Pitonga usa esta ladeira para o sortilégio da aparição. Um, o Quim, ouviu-o e viu-o, em jeito de vagamundo, numa voz que parecia vir do cavado de um poço: «Quim, quando encontrares a minha, diz-lhe que não demore que estou com falta dela.» E ai de quem o desdisser porque o guardador já afiançou que lhe faz o mesmo que o Fragão fez ao Pitonga.

O sol vai-se finando. No ocaso, uma mancha de desmaio alaranjado. É a hora dos velhos do Asilo desentorpecerem debaixo das ramadas. A algaraviada da criançada distrai a quietude. As Avé-Marias, no campanário, clamam à devoção. Abarco, num relance, a majestade da terra e aí vou eu sorrir à vida que as crianças espalham.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A PROCISSÃO

(Clique na imagem para ampliar)

Gumiares é uma aldeola de pouco mais de um cento de casas, acabadas e ricas, umas, construídas à medida das posses e remediadas, outras. Tem um caminho a meio, separando vinhedos escassos de pomares abundantes. Entra-se por ele, esmagando o serrim de uma carpintaria alimentada pelos pinheiros do monte de Santa Bárbara com a sua capelinha, em vigilância protectora, a encimá-lo.

Naquele final de uma manhã de Agosto, sob um calor abafado de trovão a molengar os corpos, a banda de música actuava no adro, os emigrantes encostavam-se aos carros com as letras dos países do seu suor e as chaminés fumegavam no fazer dos almoços melhorados.

Silvestre, mordiscando a expectativa, dirigiu-se, com o irmão, à casa do primo Gabito que os recebeu no cimo das escadas.

- Sejam bem aparecidos! – esfuziou, enquanto descia com as cautelas dos seus setenta e cinco anos de reumatismo avivado em cada Inverno frio e húmido como eram os de Gumiares. - Então só vieram vocês? Mas eu contava com todos, valha-me Deus! – acrescentou pesaroso.

Cumprimentaram-se sem fingimentos. A Rosália – devia ter metade da idade do Gabito – surgiu fresca, a enxugar as mãos no avental, em jeito de matrona precoce.

Gabito, ao fim de meia dúzia de anos de viuvez, fizera as partilhas com os filhos e amancebara-se, num gesto de escândalo rural, com a sua antiga criada. Rosália possuía uns olhos verdes de fogosidade contida num rosto com traços de ligação controversa; o modo de ser de uma gazela desconfiada numa selva de leões, mas intervalos de desinibição previdente em riso de fêmea não realizada.

- Vamos esperar pela procissão e depois almoçamos – disse Gabito, boca escancarada de satisfação. - Agora está tudo na missa, mas acaba num instante – rematou seco.

Subiram para a sala de jantar. Numa mesa enorme, rodeada por cadeiras aveludadas de espaldar alto, os pratos, bem alinhados, luziam com os talheres; numa mais pequena espalhavam-se doces variados. À direita, ladeada por sofás de couro castanho debruados a madeira do mesmo tom, resplandecia uma cristaleira com serviços caros; em frente, sobre uma espécie de armário, regougava uma televisão. Para a rua davam duas janelas e uma varanda de sardinheiras. Debruçado nesta, Silvestre explorou as vistas: o monte de Santa Bárbara, revestido pelo verde dos pinheiros, roçava as nuvens; logo abaixo, na ondulação da descida, talvez um acre de terra com um punhado de cepas dispersas, de cultivo poupado, aguardando a vindima numa espera desalentada; dos vergeis de macieiras, alinhados a esquadro, evolava-se um perfume farto e adocicado; para a sua esquerda, num recanto de sabugueiros desquitado do conjunto, um melro cantou.

- Então o primo não foi à missa? – perguntou Silvestre.

- Não nos damos lá muito bem, eu e o Padre - respondeu, com um tom de aborrecimento na voz. – Fez uma pausa. - Sabe como é, coisas da terra, desta gente que não tem nada que fazer – completou com algum sarcasmo.

- E que tem isso a ver? Uma coisa é a devoção, outra...

- Tem razão, mas, sabe, não gosto de o encarar...

Gabito fora atrevido. Em Gumiares nunca se vira uma coisa assim. Um homem com sete décadas nas pernas, mais para lá do que para cá, netos crescido, juntar-se a uma Rosália qualquer, com menos – ou um pouco mais, que interessava? – de metade da sua idade!? O povo falara. No seu entendimento, aquilo era, por um lado, maluqueira de velho e, por outro, ganância de rapariga nova a sonhar com contos de reis, lagar e tulhas cheias. «O maluco do velho», como o chamavam na aldeia, contudo, segurara-se. Os dois filhos mais velhos, arrumados cada um em sua casa, pomares e cepas independentes, encolheram os ombros. A divisão de bens, todavia, não calara o Silva. Mais instruído, com frequência liceal e gosto pela leitura, quiçá mais amorável e delicado, não o satisfazia tanto o materialismo das coisas como a honra de uma maneira. Ia mais longe e mais fundo, ao sentimento da vida que se faz de respeito e gratidão. Após discussões azedas, por bastas ocasiões a ameaçar uso de mãos ou o que estivesse mais a jeito, apelidava os irmãos de traidores, incapazes de respeitar o nome e a memória maternas. Ciente de que a alma da Mãe se reincarnara no seu rebate, mandou, numa tarde de Maio, e com a liberdade que a sua condição de solteiro permitia, uma rajada de desprezo a todos eles e abalou para o Brasil onde um tio paulista lhe prometera guarida. Levava a recordação dela e, no bolso, as notas da venda da sua parte a um ricaço de Chãos. O irmão mais velho, bem o pressionara para lha vender, mas berrara-lhe que antes queria deixar tudo a monte a ceder um palmo a «hipócritas como tu!».

O Silva subira na consideração de Gumiares, as gentes falavam dele com carinho, e o Padre Messias usava o seu exemplo na cristandade das suas prédicas.

Para Gabito, e restante família, o caso não os espantou. Desde os tempos dos estudos, em Lamego, que o Silva era dado a contrastes e arrebatamentos. Não suportava o que ele chamava imoralidades; o mais pequeno pormenor ético ou desconsideração consanguínea, deixava-o no limiar da exaltação. Repentino e apático, alegre e macambúzio, apaixonado e indiferente, irritado diante de um gasto e calmo perante uma poupança, podia-se afirmar, sem muito exagero, que foi com alívio que os irmãos o viram partir no carro de praça do Flecha. Só Gabito enxugou as lágrimas. Deu-lhe ganas de correr atrás dele, pôr-se diante do carro, gritar-lhe que abandonava tudo, até a Rosália se fizesse muita questão nisso, para que ele ficasse. Percebeu, num repente, que nada vale mais do que a presença de um filho, mesmo de um filho incómodo, mesmo um daqueles filhos a quem os Pais querem mais quanto mais mal lhes fazem. O Silva era o mais novo dos três, nascido já fora dos cálculos procriadores, o protegido da sua falecida, o menino que ela amparava porque – como dizia – «quanto mais sensível mais fraco». Nessa noite, nem o corpo quente da amante lhe fez esquecer a poeira que o Mercedes de aluguer levantou.

Gabito notou à sua volta o crescer de uma barreira de frieza que só o seu dinheiro conseguia rasgar. Tal magoava-o em dobro, porque àquela juntava a impostura com que o tratavam, mas a que se foi habituando. Até o Padre Messias deixara, sequer, de o olhar, a sua casa riscada no mapa dos desvelos paroquiais. A tudo resistia com maior ou menor custo, num faz-de-conta de normalidade. Só o silêncio do seu Silva lhe cortava o coração. Retirava-se, então, para o recém-adquirido pomar do Cosme, e ali chorava como um Pai, convulsivamente, abafando os soluços no barulho do motor de rega. Pusera-o a estudar num bom Colégio quando disse que queria tirar o Liceu, pensou que iria ser o Doutor da família em contraste com o João e o Fortunato que andavam de cá para lá no negócio da maçã. Se não continuou foi porque não quis. Enquanto a sua Mulher foi viva cumpriu sempre com os seus deveres, criara os filhos num exemplo de trabalho, fizera casa, prosperara com a inveja a pisar-lhe os calcanhares, nunca faltara com o necessário e, por vezes, resvalava nos dispêndios só para acirrar as emulações da aldeia. Juntara-se à Rosália porque não queria morrer sozinho num Lar com os filhos a visitá-lo para verem se ainda estava vivo e a lembrança da Mulher a aumentar-lhe o abandono. Mais do que uma amante de momentos raros ou um estímulo para disfarçar a preocupação prostática, era uma muleta a que se agarrava para cumprir hábitos de comida feita, roupa lavada, companhia de insónias, uma cabeça que não se esqueceria de lhe dar os comprimidos que o Médico receitasse, uma tratadeira para a incógnita de um fim de vida.

Um dia, malucando em tudo isto, o carteiro entregou-lhe uma carta de riscas amarelas. O coração quase lhe parou. Com a vista enevoada leu as primeiras letras do Silva. Que desculpasse, mas, ele, apesar da desconsideração que fizera à Mãe, não se esquecia do Pai; que estava bem, já dono de uma padaria nos arredores de S. Paulo, com algumas saudades, é certo, mas sem pensar em regressar.

- O Silva tem dado notícias, primo? – perguntou Silvestre.

- Lá está... Continua bem na vida, convidou-me para o ir visitar, só eu, claro... – reticenciou.

Um foguete estoirou, interrompendo a fala. Outros se seguiram num ribombo que escandalizou a pasmaceira. O caminho, de súbito, perdeu o sossego. Mulheres ligeiras, com camisas brancas e saias azuis, passando sob a varanda do Gabito, cumprimentavam como quem não quer faltar ao respeito pelos estranhos; outras, cochichando baixinho, coziam-se às sombras das macieiras e aceleravam o passo como beatas queirozianas de um qualquer Padre Amaro.

O sol estava no auge. A missa acabara e o foguetório estremecia a terra. A passarada fugia em revoadas e os cães ladravam. Não tardaria a procissão.

Foi no regresso de uma madrugada de Junho. De Porto Amélia a Chãos, parara em Nacala, Beira, Lourenço Marques, Durban, Cape Town, Moçamedes, Lobito, Luanda, São Tomé e Funchal. Em Lisboa, Silvestre chegava ao fim de uma longa viagem. Lá longe, uma saudade sofrida espraiava-se pelas picadas e pelas tembas; uma lembrança de estoiros e gritos, raiva e sangue, corpos vigorosos e farrapos-lençóis; o Pires, Furriel alentejano, com risos interrompidos numa curva da Serra Mapé e uma braço do Barbosa numa mina de Muidumbe; os ecos das noites cacimbadas ou das tardes causticantes, de acampamento em acampamento. O regresso a Chãos, povoado decrépito mas rico - porque fora ali que ele vagira untado com o sangue da Mãe -, devolveu-lhe a dignidade cortada por um ditador raivoso que o mandara num barco transporte de carne para canhão; reencontrava os abraços da família e dos amigos, gente que suava nos campos, alguns já passados por África, outros à espera de vez, ignorando se o velho Calígula era eterno ou morreria como todos os mortais. Também os foguetes acordaram a aldeia naquela madrugada sem horas. Silvestre regressava vivo e moreno do sol moçambicano, mais velho e mais perspicaz que a ausência criara defesas, um rosto seco mas uma alma sempre – mas sempre – solidária. Partira um dia de Chaves com uma angústia do tamanho da Serra Amarela a tapar-lhe a garganta. Silvestre estava de volta e o estrondo dos foguetes lembrou-lhe a aleluia da sua ressurreição.

- Primo, daqui a pouco temos a procissão – atirou Gabito, sem saber que o estava acordando do limbo da memória.

Silvestre sorriu atencioso e não disse nada.

O cortejo, após uns nervosos preparativos no adro, espraiou-se, colorido, no caminho: à cabeça, o estandarte da irmandade de Gumiares seguro por um homem sem idade que é sempre assim a dos velhos, muito velhos, quando, ainda por cima, uma opa negra os envolve; depois, entre aquele e o Sagrado Coração de Jesus, dois anjinhos espantados, de vestes caras e inocências brancas, com as Mães perto para lhes remediarem qualquer descaída das asas; um Cristo curvado, de barbas e coroa de espinhos, arrastava uma tosca cruz de madeira; seguia-o Nossa Senhora das Dores, distraída a mirar os ocupantes da varanda do Gabito, que, apesar de tudo, tolerante na sua crença baptismal, sorria; um S. João espartano, de costelas salientes, cordeiro enrolado ao pescoço, compenetrava-se do seu papel; Nossa Senhora de Fátima, alta e bonita, num rosto trigueiro, ligeiramente comprido, caminhava serena e alheia do que à sua volta se passava; a uma curta distância seguia Santa Bárbara, de menino ao colo, em andor azul e vermelho repleto de marcos e francos; o Padre Messias, envolto na alva de linho, segurava a Custódia sob o pálio que os mordomos, escorrendo suor, levavam, inquietos, a mexerem-se para disfarçarem o incómodo; a Banda, logo atrás, pautava a cadência com o homem do bombo transfigurado num possesso enrubescido; por fim, homens, de chapéus nas mãos, e mulheres, de lenços brancos rendados nas cabeças, cantavam o Avé-Maria, enquanto os que se postavam nas bermas ajoelhavam à passagem do sobrecéu.

Quando a procissão acabou de passar, Gabito, como liberto de uma obrigação, fez um sorriso a unir as orelhas, virou-se para a Rosália e disse-lhe: «Pode vir o anho!»
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.