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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

De volta ao Milagre do Cruzeiro

Estou de volta ao Milagre do Cruzeiro a pedido de alguém que gostaria de conhecer o essencial da história contada na opereta, em episódios tão românticos como realistas. No dia da estreia foi distribuído um livrinho-programa onde constava um resumo dessa história e que agora transcrevo, com um outro acrescento da minha lavra.

Diz assim esse resumo: “Era uma vez uma menina chamada Joaninha que, por ser órfã, foi recolhida e amparada pela sua madrinha, a Srª Morgada. Vivendo no aconchego de tão santo lar, a Joaninha não podia deixar de revelar as excelsas qualidades da sua madrinha, se bem que ela possuísse um coração terno e afável, nunca indiferente à miséria e dor alheias, daí resultando a estima de toda a gente, principalmente os pobres que ela socorria.

Certo dia, por motivo de um casual encontro com Fernando - mestre-escola – sentiu dentro de si a chama do amor.

Alvaro, filho do fidalgo dos Cabris, moço galanteador de quem as raparigas da aldeia fugiam, por se dizer de boca em boca, ser autor de certos males, lembrou-se de dirigir olhares pecaminosos e palavras intencionais à bondosa Joaninha, perseguindo-a durante as suas visitas de devoção ao alto do Cruzeiro.

O maldoso João ferreiro soube disso e estaria pronto a ajudar o fidalgo nos seus torvos intentos.

Inesperada tragédia atinge em cheio Fernando e despedaça o coração de Joaninha. É que um tiro, também inesperado, atingiu e matou o fidalgo, ele que momentos antes tinha trocado umas palavras azedas com Fernando.

Joaninha, como louca foge de casa e dirige-se ao Cristo do Cruzeiro e implora-lhe a morte como único alívio para a sua dor, para o seu coração desfeito! Tomba inanimada e o bom Deus manda os anjos levantar o seu corpo débil e iluminar-lhe o caminho por onde, novamente, a felicidade viria.

Foi milagre!!!! E no fim daquele trágico dia brilhou a luz da verdade! Soaram as “Avé Marias”.

Este último quadro, tal com estas últimas palavras, fazem crer que o autor Rafael Magalhães, era um homem de devoção e de fé. De facto, era de uma religiosidade singular, intimista de todo e entendia que qualquer prece, qualquer diálogo com Deus, devia acontecer com muito respeito e total privacidade.
E é crível também que o autor da opereta, ao passar diariamente na rua Pedro Verdial, tenha encontrado ali uma fonte de inspiração, fosse no palavreado das mulheres do soalheiro, fosse nos janelões gradeados da velha cadeia onde os detidos, desirmanados do mundo e da razão, tinham olhos libertos e afoitos a todo o largo da concha reguense.

Já agora, traga-se aqui aos cenários, duas ou três personagens que ficaram para sempre na memória de quem as viu em cena. Pontificava a Teresa Chocalheira, serviçal da Sr.ª Morgada. Parecia o diabo à solta num mundo de milagres, mas não se servia de impropérios descabidos nem usava termos estapafúrdios. O seu fraseado eram só chalaças, sarcasmos e ironias, respostas na ponta da língua de mais a mais com assentimento e aprovação da patroa, a Sr.ª Morgada. Também o oficial de diligências, figura bem delineada e tão bem desempenhada pelo inconfundível Teixeirinha (lembram-se?). Diante da Teresa Chocalheira e diante das provas que incriminavam o assassino do fidalgo mostrava-se muito confuso, hesitante e inseguro, cheio de embaraços a fazer as suas partes gagas. Novelas, o regedor ou António, o perdido eram dois figurantes que nos diálogos e na postura se revelaram com muita desenvoltura tal como o João ferreiro, a disfarçar as sobras dos seus maus humores.

No final da opereta, final da história, surgiam duas figuras de anjos na beatitude milagrosa do cenário e um coro de vozes cantou uma Avé-Maria.

Diga-se, agora, que muita gente tem dito que “O Milagre do Cruzeiro” devia voltar à cena. Acho que não... Os tempos são outros e se mudou o mundo também mudaram as circunstâncias. Nos tempos que correm, tempos confusos e destemperados, o “milagre” não teria cabimento nem aceitação. Deixe-mo-lo no pó dos arquivos.

Enquanto isso, venho eu à boqueira do palco do velho Teatro dos Bombeiros da Régua dar vazão aos cenários do sentimentalismo.
Manuel Braz de Magalhães, Janeiro de 2013

Clique  nas imagens para ampliar. Sugestão do Dr. José Alfredo Almeida (JASA)  Também publicado no semanário regional "O Arrais", edição de 23 de Janeiro de 2013. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O velho Teatro dos Bombeiros da Régua - O Milagre do Cruzeiro


À memoria de António Rafael de Magalhães


Quando havia a tradição do teatro amador alguns dos principais espectáculos fizeram-se no Teatro dos Bombeiros da Régua.

O Teatro dos Bombeiros pouco tinha como sala de espectáculos. Por assim dizer, não era mais que uma improvisada sala do rés-do-chão do quartel, hoje baptizado com o nome do benemérito Delfim Ferreira, situado na Avenida Antão de Carvalho que, por volta de 1950, não passava ainda de uma modesta construção em estado muito inacabado.
As pessoas na Régua sempre tiveram uma devoção pelo teatro. Os antigos apreciavam-no num salão que ficava na Rua 1º. de Dezembro, mas umas das maiores cheias do rio Douro destruiu-o e acabou com o culto das artes cénicas e, durante muito anos, a Régua não teve  mais nenhuma sala. Depois, surgiu o Salão Recreativo, ao cimo da antiga Rua das Vareiras, que depois de muitos sucessos, foi abandonada e esquecida lentamente como sala digna e respeitável de espectáculos culturais. Quem sabe, diz que aí se fizeram exibições notáveis de peças de teatro e representaram actores com nome consagrado a nível nacional.

Hoje as coisas não são assim. A cidade não tem sequer uma casa para a reapresentação teatral. Os actores profissionais deixaram de aparecer nos palcos da Régua. Os actores amadores perderam o gosto pela figuração. O teatro deixou de fazer parte da vida cultural da cidade. Restam para estudo, as memórias desse antigo teatro. Algumas encontram-se historiadas nas crónicas de João de Araújo Correia, publicadas nos seus livros e, algumas, pelos antigos jornais.

Mas, há mais memórias do teatro amador que se fez na Régua para serem contadas. Por exemplo, está por narrar o sucesso que fizeram as sucessivas representações da peça “O Milagre do Cruzeiro”, opereta de quatro actos e um quadro, com letra e música da autoria de António Rafael de Magalhães.
A sua primeira representação desta opereta aconteceu no dia 18 de Outubro de 1950, no palco do Teatro dos Bombeiros da Régua. Embora fosse anunciada para ser levada à cena uma semana antes dessa data, na verdade não chegou a acontecer por ter adoecido um dos actores. Na sua primeira representação, a opereta obteve um extraordinário êxito, o que obrigou a fazerem sete representações consecutivas e, a última, teve lugar no palco do Cine-Teatro Avenida. Chegou também a ser representada no Teatro do Casino Afifense, em Tabuaço no Teatro Luís de Freitas e em Favaios no Teatro António Augusto Assunção, sempre com as casas cheias de espectadores e aplausos merecidos para quem a escreveu e a representou.

A opereta foi escrita para satisfazer um pedido de um grupo de jovens que tocavam na “Orquestra Reguense” dirigida pelo professor José Armindo Ribeiro. Pretendiam representar uma peça de teatro inédita, para com o dinheiro das receitas do espectáculo comprarem novos instrumentos musicais. O autor aceitou o pedido e, em contrapartida, exigiu que uma parte daquelas receitas deveria ser em benefício de uma instituição humanitária carenciada, os Bombeiros Voluntários.
O tema do enredo dessa opereta é simples de contar. Para quem não o conhece faz-se o seu resumo para compreender o motivou tanto sucesso. Segundo o seu autor, baseava-se na vida da aldeia. Como figura dominante da acção está uma menina órfã, a bondosa Joaninha, recolhida e amparada por uma virtuosa madrinha, a Senhora Morgada, que sendo sensível à miséria e dor alheias, recebe a estima de toda a gente da aldeia, muito especialmente dos pobres que visitita com frequência para lhes levar o seu óbulo acompanhado de lenitivas palavras. A paixão que nasce num encontro com o mestre-escola Fernando, vai prendê-los nas teias do mais puro amor. Outra personagem, o Álvaro, filho do fidalgo dos Cabris, moço alentado da aldeia, lembrou-se de dirigir olhares pecaminosos e palavras intencionais à Joaninha, numa das visitas de devoção ao Alto do Cruzeiro que o maldoso e antipático João Ferreiro aproveitou para os seus turvos intentos, disparando um tiro de morte sobre Álvaro, de forma a que a justiça terrena culpasse com causador do homicídio, o apaixonado de Joaninha. A partir desse momento, esta tragédia despedaça o coração de Joaninha que sofre de luto, dor e desolação. Dirige-se ao Alto do Cruzeiro a implorar protecção do Senhor que sempre a tem ouvido…mas em vez de suplicar exige de Deus, impõe em seu favor. Já resignada aceita o sofrimento e confessa-se pecadora e pede ao Senhor a sua morte. Ao cair inanimada aparecem lá do céu os Anjos que levantam o seu corpo débil e trazem-lhe um clarão de esperança que dissipa o negrume de tamanha infelicidade. O crime é desvendado, e renasce um amor eterno.
Foi este o milagre…!!!

É um retrato de uma época e de um país rural que valorizava os valores de Deus, Pátria e Família, vulgarizados como os pilares de uma sociedade em tornou do qual se movia o regime político do Governo de Salazar.
No livrinho de apresentação, o autor da opereta apresentava-a com um juízo mais modesto e de recorte poético. Expressava que se inspirou num cenário de uma paisagem primaveril campestre de uma aldeia rural, assim descrita: “já com prados verdejantes e enfeitados de boninas, malmequeres, e papoilas. As searas prometendo bom ano de pão! Sentia-se a frescura que a viração espalhava o aroma agreste das relvas e o perfume das flores...; aqui um regato de água cantante; além um rebanho dilacerando as ervas tenras e frescas; acolá, no cimo do monte dominando a brancura duma capelinha realçada por um sol rutilante e creador! De vez em quando uma brisa ténue fazia murmurar a folhagem do arvoredo e aves, chilreando, davam largas ao seu contentamento! Mas era preciso começar e por isso curvei-me para esta mansão florida.(…). O resto, aquilo que não podia abarcar com as mãos, trouxe-o nos olhos e ouvidos”.
A história dessa peça encantou a sociedade reguense dos anos 50. Outros tempos…! Quem a conheceu e a viu representar compreende que hoje ela não se adapta as realidades sociais e às vivências humanas do nosso tempo. Já não há quem se emocione com uma história assente nos valores morais e na beleza idílica das aldeias e muito menos são os que acreditam na fé religiosa como recompensa pelos castigos terrenos e na celestina descida dos Anjos para desfazer as injustiças humanas.
Vivemos em outros tempos e outros valores. Apesar de tudo, “O Milagre do Cruzeiro” era o melhor do teatro de amadores que parecer falta ao quotidiano de uma cidade que desperta para o turismo e aos reguenses que querem fugir ao tédio e a rotinas da vida. A opereta agradou mais tanto pela simplicidade da sua história como pela interpretação dos actores amadores, alguns dos quais encarnam perfeitamente a sua personagem, entre eles o Fernando Vasques de Carvalho, Maria Esmeralda de Almeida, Alzira de Sousa, José Ferreira Gado, Maria Amélia Pinto Reinaldo Miranda, António Teixeira e António Braz Magalhães e o Fernando Braz Magalhães. As músicas originais sobressaíram e entraram com facilidade no ouvido, não fossem executadas pela famosa - mas também já extinta - Orquestra Reguense. A “Marcha da Régua”, uma das muitas músicas que se cantava na opereta, veio a tornar-se o hino da cidade, tocado em festas e em representações oficiais. Os cenários vistosos e coloridos, trabalhados pelo brio de um técnico profissional, do Teatro Sá da Bandeira, do Porto, o credenciado Gaspar Leorne, ajudaram no sucesso e fizeram cativar o público.
O velho Teatro dos Bombeiros da Régua desapareceu e, no seu lugar, não há nada que o recorde. O teatro amador acabou por desaparecer e não há pessoas com vontade de o voltar a representar. Assim, o ditaram as novas modas culturais da sociedade reguense. Com poucas condições, nesse tempo, o quartel foi o único espaço cultural que, na pequena vila da Régua, aproximava as pessoas e lhes permitia os serões e convívios mais divertidos e animados.
Desde então, a Régua muito mudou. Se a missão principal dos bombeiros da Régua permanece igual há mais de um século, o seu quartel uma verdadeira obra-prima da arquitectura, que agrada ao olhar mais atento pela beleza de granito da sua imponente fachada principal, deixou de ser o lugar privilegiado para se fazer teatro amador. Perdeu-se a benigna tradição de naquele num palco improvisado se verem actuar os grandes actores amadores da nossa terra.

- José Alfredo Almeida*, Setembro de 2011.
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O velho Teatro dos Bombeiros da Régua
O Milagre do Cruzeiro
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 20 de Outubro de 2011
(Click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)

Clique nas imagens acima para ampliar. Colaboração de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2011. As fotos acima foram cedidas por Fernando Magalhães, filho do autor desta peça teatral.

  • *O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O Milagre do Cruzeiro

Tenho diante de mim o livrinho - programa referente à estreia da opereta O Milagre do Cruzeiro, com letra e música de meu pai António Rafael Magalhães. Nele se diz que a opereta foi escrita em Abril de 1950 e apresentada ao público em 11 de Novembro do mesmo ano no quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua.

Cinco anos antes tinha acabado a II guerra mundial e toda a gente vivia nas benquerenças da paz e duma permanente euforia. Por sugestão do Lourencinho, ao tempo comandante dos bombeiros e também a pedido de meia dúzia de componentes da Orquestra Reguense, meu pai lá se dispôs a escrever e a musicar uma opereta, coisa impensável nos seus horizontes artísticos. Mas, como quem se precata, começou a dar tento dos teatros do mundo que é como quem diz, o quotidiano do seu viver e das suas congeminações… Se nas horas forras do seu comércio de tabacos vinha até à porta da loja, a olhar a rua, o que é que via? Via o chamado Cimo da Régua com um polícia sinaleiro atento ao trânsito e via a novidade dos carros americanos, carros de bom tamanho e bons cromados sendo alguns conduzidos pelo novo-riquismo do volfrâmio. Nas costas do polícia era a sala de estar dos mirones e dos meninos bonitos, todos fazendo horas espreguiçadas e a olharem a tacanhez provinciana do mundo em derredor… E o Rafael Magalhães a dar conta do cenário.
No regresso à casa de Remostias passava junto da cadeia da vila, com seus janelões gradeados e onde se corporizava a responsabilidade de crimes maiores ou menores, sabe-se lá se alguma virtude escondida num corpo injustiçado. As celas escuras e soturnas recebiam uma esmola de luz e aconchego pela tardinha, à hora do sol poente. Seria tudo isto mais um capítulo, um novo cenário dos teatros do mundo? Seria, seria…

Um pouco mais adiante, num encruzamento de caminhos, era o bom dia ou a boa tarde das mulheres do soalheiro, isto se o tempo estivesse de feição e com boa temperança. Meu pai, Rafael Magalhães, respondia à saudação e reparava que elas se catavam umas às outras e espiolhavam o norte e o desnorte de vidas alheias… Se uma fazia meia, outra remendava o cu das calças do seu homem. Mas, todas elas integradas num resumo dos teatros do mundo e meu pai a congeminar até que chegava ao lugar das Fontainhas.

A partir daí não havia casas nem casebres nem sequer um arremedo de comparsas ou figurantes. A estrada de terra batida, ladeada de vinhedos, era chão afeiçoado a um cigarrinho de enrolar e às sementes que iam vicejando no ramalhete de uma história já pensada e já delineada. Disse-me um dia meu pai… Disse-me que as linhas e entrelinhas do enredo se revelavam no caminho das Fontainhas a Remostias, entre vinhedos, numa íntima comunhão com a natureza, como se aquele caminho fosse uma fonte de inspiração.
Chegado a casa, isolava-se na sala grande, sala propícia à leitura, à escrita e à música. Era ali o salão nobre das suas ideias, da sua criatividade e até das impressões que dia-a-dia se iam polarizando no seu cérebro. Havia ali um piano, uma flauta, um violino e um bandolim de quatro cordas. Dedilhava o bandolim e de pronto lançava no papel de música as notas compassadas e dançantes de um bailarico ou os acordes dulcificados de uma Avé Maria, tudo isso destinado ao canto e aos descantes da opereta. O enredo, esse tinha o romantismo tradicional, de mãos dadas com o realismo da época.
Os ensaios eram sucessivos e não se faziam à sobreposse. Faziam-se num ambiente de festa com a juventude e o entusiasmo de todos os figurantes.

A história do Milagre do Cruzeiro foi no dia 18 de Novembro,  no ano santo de 1950 e no quartel dos bombeiros onde se improvisou um palco e uma plateia num salão ainda inacabado. Foi ali que se assistiu ao êxito e ao sucesso de uma opereta que por onze vezes seria representada.

Se meu pai ressurgisse por aí, estou certo de que gostaria de ler e relembrar este memorial e até me dava a sua bênção. Mas isso, só por milagre dos milagres.
-  Manuel Braz de Magalhães, 24-11-12

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no jornal regional semanário 'O ARRAIS', edição de 12 de Dezembro de 2012. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Sinais de incêndios na Régua

(Clique na imagem para ampliar)

As sirenes dos carros de fogo dos bombeiros da Régua que invadiram a Rua João de Lemos, pelas 12. 40 Horas, no dia 21 de Junho de 1995, anunciavam o desaparecimento de um antigo estabelecimento do comércio tradicional, A Inovadora, mais conhecida por Casa Fortunatos, por ser esse o nome dos seus conceituados donos.

Este incêndio teve início no escritório do Grémio dos Vitivinicultores do Douro, instalado no 1.º andar do prédio, depois de saírem todos os funcionários para o almoço. As portas da casa A Inovadora também tinham encerrado. Quando deram o alerta para os bombeiros, o fogo tinha-se propagado rapidamente pelos soalhos de madeira e forros do telhado. Os bombeiros comandados pelo 2º Comandante Manuel Gouveia rapidamente chegaram, descendo a Rua Serpa Pinto, com dois carros de combate carregados de água - o Mercedes Baribbi - que usaram com as agulhetas no ataque ao fogo, enquanto não ligavam as mangueiras de alta e baixa pressão às bocas da rede pública. Os bombeiros recorreram aos aparelhos respiratórios para entrar nas instalações, só que era impossível a circunscrever o fogo mas, algumas horas depois, tinham o fogo dominado. Durante a tarde, o fogo reacendeu-se e o velho prédio de finais do século XIX acabou todo em ruínas.

Os prejuízos pela perda do edifico, do seu recheio e das mercadorias do estabelecimento foram contabilizados como elevados pelos seus proprietários. Comentavam que o valor do seguro não dava para indemnizar todos os danos que foram causados, como consta no relatório de ocorrência, por um curto-circuito nas instalações eléctricas no escritório do Grémio.

Era, assim, o fim da famosa A Inovadora que se encontrava de portas abertas no comércio reguense, desde 1934. O Cimo da Régua, como foi sempre conhecido o centro urbano, perdia uma casa comercial das mais antigas no ramo das fazendas, tecidos, roupas de homem, senhora, crianças e outras miudezas. Perdia-se um estabelecimento apreciado pela clientela, que marcava a diferença pelo seu grande balcão em madeira, os graciosos armários onde se expunham as novidades, os velhos metros de medir os tecidos, o atendimento familiar dos seus caixeiros, a salvação do “ bom dia minha senhora”, à mistura com os desabafos pessoais, a presença das figuras aprumadas e cavalheirescas do velho Sr. Antoninho Fortunato e do sobrinho Manuel David. Eram, os velhos tempos dos comerciantes reguenses que tinham como melhor estratégia de marketing para vender, o sorriso franco na cara.

A Casa dos Fortunatos – A Inovadora que nunca se impusera como nome comercial conhecido - fechava para sempre as portas à sua clientela. A rua ficava mais triste e sombria. O comércio local continuava a empobrecer. E, as restantes antigas casas comerciais da rua - como a do Hipólito, dos Pombinhos, da Fortuna, do Borrajo e a mercearia do Zé Pinto e, outras já desaparecidas, como a Formosura Reguense, do Valente Velho - que tinham feito da Régua uma terra de prósperos negócios, sentiam as primeiras dificuldades com o aparecimento de uma nova concorrência comercial. Os anos em que se distribuía mais beneficio e a produção do vinho se vendia a bons preços escasseavam. Com menos rendimentos, as pessoas não gastavam tanto dinheiro no comércio local, o que se reflectia nas vendas, ao apresentarem piores lucros. As oportunidades dos comerciantes fazerem grandes fortunas já não eram como no antigamente. Por isso, nos nossos dias, o negócio dos Fortunatos teria mais dificuldades de resistir ao comércio que se passou a fazer na Régua. A clientela mudou os seus hábitos de compras. Surgiram, como ia acontecendo noutros lugares, as grandes superfícies comerciais, como o Pingo Doce, o Lidl, o Intermarché, o Dia e inúmeras lojas de chineses, para quem o rosto das pessoas nada importa ou significa.

As marcas deste incêndio são visíveis na cidade, passados que são 14 anos da tragédia. O edifício mantém-se em ruínas para tristeza dos que passam nesta rua. As velhas paredes de xisto resistem ao passar dos anos. Na padieira da porta principal, o anúncio da casa permanece intacto, talvez que à espera que um milagre a faça ressurgir das cinzas.

Este incêndio fez-nos reviver as memórias dos tempos que os bombeiros da Régua eram chamados para os incêndios pelas diferentes badaladas do sino da Igreja do Cruzeiro. Como o assunto é desconhecido, recordamos a crónica de Joaquim Pires (pseudónimo do escritor reguense Dr. João de Araújo Correia), publicada no “O Arrais”, em 6 de Março de 1980, que nos fala de uma curiosa lista de “Sinais dos Incêndios”, usada para dar a saber aos bombeiros onde havia o fogo:

“Estou a ver, no quarto de meu pai, dentro de um caixilho, uma espécie de registo intitulado Sinais de Incêndio. Mas em ortografia antiga… Os sinais rezam como Signaes.

Pela ortografia se poderá avaliar a idade do registo. Idade antiga, embora posterior a Gregos e Romanos…

Pendia o registo com a sua moldura, sobre a mesinha de cabeceira de meu pai. Era uma espécie de semideus lareiro. De noite ou de dia, se o sino do Cruzeiro tocasse a fogo, aqui na Régua, o benemérito registo indicava a meu pai o sítio em que lavraria ponta de incêndio capaz de destruir a Régua.

No tempo de meu pai, havia mais medo a fogos do que hoje. Se havia confiança nos bombeiros, haveria menos confiança no material que então usavam. Hoje, tanto se confia na bomba como no bombeiro. O munícipe sossega.

Também havia, no tempo de meu pai, maior curiosidade ou possibilidade de saber onde era o fogo. Hoje, não o diz a ninguém a lúgubre sereia. O morador desiste de ser curioso ou sai à rua a perguntar: onde é o incêndio?

Graças à pagela, pendurada no quarto de meu pai, sabia ele a qualquer hora, diurna ou nocturna, se havia fogo e em que bairro andaria ele ateado.

Como de facto. A tabela rezava assim:

  • 4 badaladas – Souto, Boa Morte, Calvário, Quebra Costas, Rua das Árvores, Estrada Nova, Eiró, S. Pedro, S. João, Eirinha.
  • 5 badaladas – Fontainhas, Cruz das Almas, Rua do Passo, Carreira, Fundo de Vila, Azenha, Ferrans (?), Rua de S. José, Vila Franca.
  • 6 badaladas – Rua Serpa Pinto, Bordalo, Americano.
  • 7 badaladas – Ameixieira, Senhor dos Aflitos, Rua Custódio José Vieira, Cais de Baixo, Passeio Alegre, Rua João de Lemos, Rua Nova.
  • 8 badaladas – Rua dos Camilos à Ponte, Rua da Alegria, Rua 1.º de Dezembro, Guindais, Midão.
  • 9 badaladas – Fora de Vila.
  • Para parar - 5 badaladas.

Copiei a lista de exemplar velhinho e esbotenado. Copiei-a, acertando-lhe a ortografia pelo cânone actual. Mas, tão velho é o espécime, que duvido do topónimo Ferrans – tanto ou quanto safado. Se alguém me quiser tirar dúvidas. É curiosa a lista de badaladas. Fala-nos de ruas velhas, ruas que mudaram de nome ou o perderam – como a do Passo. Fala-nos da Régua de nossos pais que se pode considerar antiga”.

Esse tempo da Régua antiga, dos nossos bisavôs, que o escritor nos evoca já passou. Comove-nos ao falar de algumas ruas velhas e, faz-nos acreditar, que não se pode compreender o presente sem se conhecer o nosso passado. Os bombeiros da Régua modernizaram os seus alarmes de aviso para os incêndios. Os fogos exigem mais perícia e rápida prontidão. Como sinal de incêndio ainda usam o som estridente da sirene instalada no seu Quartel Delfim Ferreira. Mas, muitas vezes, recorrem ao aviso por meio de mensagens escritas difundidas pelo telemóvel que possui cada bombeiro. A cidade deixou de saber, assim, quando há um fogo. Se não fossem ainda os fumos e as chamas mais activas, as pessoas desconheciam onde fogo deixa os seus rastos de tragédia.

O último grande incêndio na Régua deu-se num outro velho prédio da cidade, situado no Largo do Cruzeiro, numa noite de Dezembro de 2008. Houve pessoas que só souberam dele pela manhã quando se sentia no ar um forte cheiro a queimado e sobravam as paredes em derrocada. Foi doloroso olhar aquele cenário de destruição que tinha atingido, no seu rés-do-chão, um requintado salão de chá da cidade, a Flor do Adro, um inesquecível espaço de bem-estar e de convívio social, muito frequentado pelas últimas gerações de reguenses.

Não resisto em relembrar as memórias de alguém que, como nós, frequentou esse lugar ao revelar com emoção um sentimento geral: “sempre que lá passarmos, vamos recordar aquele muro cheio de gente, de copo na mão, de sorriso nos lábios, onde se falava de tudo. Podem fazer parecido, igual... jamais. Que dias e noites ali passamos. Dias felizes e noites fantásticas. Nunca esquecerei esses momentos. Nunca repetirei essas alegrias e vivências. Agora, façam o que quiserem daquelas cinzas. Está lá a história de muita gente. E gente boa”.

A casa A Inovadora e o salão de chá A Flor do Adro já não existem. Os bombeiros não conseguiram salva-las da morte nas chamas do fogo. Mas pouco importam que não existam. Aqueles lugares fizeram as nossas vivências citadinas mais felizes. Ficam para sempre vivas enquanto existirem nas memórias das pessoas que escolheram a beleza da cidade da Régua para viverem.

Mas, os sinais de incêndio deixam-nos uma lição: a cidade precisa de ter o seu centro urbano tratado e urgentemente reabilitado. - Peso da Régua, Agosto de 2009, José Alfredo Almeida.

- Outros textos publicados neste blogue sobre os Bombeiros Voluntários de Peso da Régua e sua História:

  • Recordações da visita do Presidente da Républica General Ramalho Eanes - Aqui!
  • Memórias dos Bombeiros em Poiares com os Salesianos - Aqui!
  • As vidas que não se esquecem nos Bombeiros - Aqui!
  • Os bombeiros de escritório - Aqui!
  • Bombeiros Semi-Deuses - Aqui!
  • As "madrinhas" dos Bombeiros - Aqui!
  • A benção da Bandeira - Aqui!
  • Comandante Lourenço de Almeida Pinto Medeiros: Fidalgo e Cavaleiro dos Bombeiros da Régua - Aqui!
  • A força do voluntariado nos Bombeiros - Aqui!
  • A visita do Presidente da Républica Américo Tomás - Aqui!
  • Uma formatura dos Bombeiros de 1965 - Aqui!
  • O grande incêndio dos Paços do Concelho da Régua - Aqui!
  • 1º. de Maio de 1911 - Aqui!
  • Homens que caminham para a História dos bombeiros - Aqui!
  • Desfile dos veículos dos bombeiros portugueses - Aqui!
  • Os bombeiros no velho Cais Fluvial - Aqui!
  • O Padre Manuel Lacerda, Capelão dos Bombeiros do Peso da Régua - Aqui!
  • A Ordem Militar de Cristo - Uma grande condecoração para os Bombeiros de Peso da Régua - Aqui!
  • Os Bombeiros no Largo da Estação - Aqui!
  • A Tragédia de Riobom - Aqui!
  • Manuel Maria de Magalhães: O Primeiro Comandante... - Aqui!
  • A Fanfarra dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • A cheia do rio Douro de 1962 - Aqui!
  • O Baptismo do Marçal - Aqui!
  • Um discurso do Dr. Camilo de Araújo Correia - Aqui!
  • Um momento alto da vida do comandante Carlos dos Santos (1959-1990) - Aqui!
  • Os Bombeiros do Peso da Régua e... o seu menino - Aqui!
  • Os Bombeiros da Régua em Coimbra, 1940-50 - Aqui!
  • Os Bombeiros da Velha Guarda do Peso da Régua - Aqui

- Link's:

  • Portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua (no Sapo) - Aqui!
  • Novo portal dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • Exposição virtual dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua - Aqui!
  • A Peso da Régua de nossas raízes - Aqui!

quinta-feira, 24 de março de 2011

Uma Sineta de Palavras - 2

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia


Sem abusar da sua confidência, julgo que não alterarei o rigor da sua dedicatória, se acrescentar que o livro “Pátria Pequena” não foi só escrito e como uma homenagem, à “vila e o concelho do Peso da Régua”. Em grande parte esse seu livro, foi – é e será -  também,  um preito aos bombeiros da Régua, em especial aos bombeiros da velha guarda,  a todos os bombeiros do seu tempo,  como a única gente que teima em representar, neste nosso meio, um papel tão nobre, que a distingue da apatia comum”. Da mesma forma, deve ser entendido como o reconhecimento de uma Associação Humanitária que criou raízes no seu meio social e, por assim dizer, se tornou uma força invencível, obstinada em cumprir os ideais legados pelos seus heróicos fundadores.


Certamente que contar a história dos bombeiros da Régua não foi uma tarefa pensada ou imaginada pelo escritor, no sentido de que desejasse narrar os factos e os acontecimentos com uma ordem cronológica, como se fosse mestre de história. Mas, os temas tratados nas crónicas são uma grande parte da história dos bombeiros. Se nelas há muito das sua memórias também está também retratada a sua relação de amizade com os velhos bombeiros os directores. O escritor de memória em memória, de retrato em retrato e de acontecimento para acontecimento faz enobrecer a grandeza de homens bons e enaltece os seus ideais humanitários.


João de Araújo Correia, nas crónicas que dedica aos bombeiros consegue reconstruir uma parte do passado, obscuro e desconhecido, com génio, humanismo e até ternura por figuras humanas que já se tornaram imortais, em momentos que testemunhou, directa ou indirectamente, da existência uma instituição modelar, no que ela tem de sonho e de paixão, abnegação e heroísmo, grandioso e nobre, mas também de sofrimentos, desânimos, e tragédias que fizeram perder a própria vida a homens, que cumpriram ao extremo o lema do voluntariado: “Vida por Vida”.


Desde o projecto organizado por Manuel Maria de Magalhães, o líder escolhido para comandar o movimento associativo, os bombeiros aparecem referenciados nas inúmeras crónicas que o escritor publicou quer em livros quer em jornais, até ao fim da sua vida, encontrando-se as últimas no jornal O Arrais. Sempre com uma indisfarçável paixão, descreveu os bombeiros da sua terra como uma força invencível, uma força ao serviço de causas com uma dimensão moral e ética, que sempre apoiou.


Com os bombeiros, João de Araújo Correia manteve também uma ligação de sócio contribuinte. Era assim que o dizia na sua correspondência que encontramos arquivada nos bombeiros. Curiosamente, contribuinte era a classificação dos associados, definida nos primeiros estatutos, os que pagavam uma quota fixa em dinheiro para ajudar. Esta classe de associados, onde já se incluiu a D. Antónia Adelaide Ferreira, a famosa Ferreirinha, que se inscreveu como a sócia numero um, foram sempre muito importantes pelos seus contributos generosos nos momentos de maiores dificuldades económicas.


Como já se disse, João de Araújo Correia foi um dos colaboradores literários nas páginas do boletim “Vida por Vida”, folha informativa da Associação. Teve como primeiro director o seu filho Camilo de Araújo Correia que, durante um mandato de dois anos, exerceu as funções de Presidente da Direcção da Associação. Mas o escritor, sempre que lhe foi pedida a sua colaboração literária, respondeu de forma positiva. Escreveu textos e memórias relacionados com os bombeiros para os dois boletins comemorativos que a Associação editou, em 1955 e 1980, datas em que, respectivamente, comemorou as “Bodas de Diamante” e o seu primeiro centenário.


Perante os sacrifícios dos bombeiros, o escritor dizia numa carta que enviou  num dos aniversários da Associação que “a associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”.


Quando nasceu João de Araújo Correia, em 1 de Janeiro de 1899, a Associação dos Bombeiros da Régua tinha perto de dez anos de existência. Das mais antigas do país, encontrava-se numa fase em que havia muita boa vontade e determinação dos seus homens e um sentido de manter, apesar de todos os sacrifícios, um corpo de bombeiros voluntários capazes de cumprirem uma tarefa de protecção civil, então da responsabilidade da Autarquia.


Na história dos bombeiros rezavam a proeza e feitos, agraciados com medalhas e reconhecimentos públicos pelos relevantes serviços prestados às populações da Régua e dos concelhos vizinhos, onde não havia nenhuma corporação, como seja em Santa Marta de Penaguião, Armamar e Mesão Frio.


Em 1882 foi atribuído aos bombeiros da Régua, o título de “Real” , que estes passaram a usar na bandeira desenhada pelo Comandante José Afonso de Oliveira Soares.


Havia também falecido, em finais de 1892, de doença, na sua residência na Rua Serpa Pinto, com a idade de 47 anos, o principal fundador e o primeiro comandante Manuel Maria de Magalhães, o decidido impulsionador da criação dos bombeiros da Régua. Presidiu a uma Comissão Instaladora que depressa redigiu os estatutos da benemérita Associação e o regulamento para o bombeiro, com colaboração do advogado e então Presidente de Câmara, Dr. Joaquim Claudino de Morais, o qual prometeu a ajuda pessoal e da autarquia.


Na crónica “Bons e Maus Exemplos”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, -  assinada com o pseudónimo Joaquim Pires -  o escritor evoca um  pormenor da vida pessoal do primeiro comandante, natural de Bragança, mas que viveu e trabalhou na Régua, onde exerceu no Tribunal Judicial, então localizado no rés-do-chão do edifício da Câmara Municipal, as funções de escrivão de direito.


“Contavam os antigos reguenses que o Rei D. Luís, dando o título de Real à associação dos nossos bombeiros, em 1882, se relacionou, amistosamente, com o fundador e primeiro comandante da corporação Manuel Maria de Magalhães.
Contavam também que D. Luís se carteava com ele. Apesar de rei, não se desdenhava corresponder-se com um escrivão. Creio que foi escrivão o Comandante Manuel Maria de Magalhães”.   


O escritor não conheceu pessoalmente o primeiro comandante dos bombeiros da Régua, mas na crónica “Bombeiros da Velha Guarda” (in Pátria Pequena, 1965) confessa a sua admiração pelos primeiros bombeiros alistados, com os quais se relacionou e conviveu, não para lhes bendizer feitos heróicos, mas para retratar os seus exemplos de altruísmo.


“Fim de Novembro, fazem anos os Bombeiros da Régua. Contam oitenta e cinco, mas parece que nasceram ontem. Nem uma ruga, nem um cabelo branco, nem um desalento…Garbosos até no capacete, fazem do seu garbo agilidade, frescura e força. Que milagre!
Confraternizam, em cada aniversário, os Bombeiros da Régua. Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…Mas talvez que nenhum se lembre, nem bombeiros nem contribuintes, de sócios e bombeiros antigos, que também se sentaram, em ágape semelhante para comer e gracejar.
Quem vai contando anos, dos que já fazem mossa, não dos bombeiris, que rejuvenescem, lembra-se da velha bomba e de quem a movia e sustentava.
Lembra-se de Afonso Soares, com a sua barba branca; do poeta Camilo Guedes, de gravata à La Vallière; do José Avelino, que comia um boi por uma perna; do José Ruço, que pertencia ao grupo auxiliar; do Joaquim Maria Leite, o Riço, que pertencia ao corpo activo com alma de criança e alma de bombeiro. Mas, de quantos se não lembra ainda? Justino Lopes Nogueira, o Justino, daria um livro de inocentes recordações alegres.
O quartel dos Bombeiros, situado ali em baixo, na Chafarica, largo dos Aviadores, como hoje se diz, era o clube da terra. Havia outro, mas, aristocrático, presidido pelo monóculo do Dr. Costa Pinto. Clube, ponto de reunião sem preconceitos, era o quartel dos bombeiros. Ali se jogava e conversava à vontade. Ali se davam gargalhadas que faziam estremecer o quartel. Guarda-lhe o eco algum ouvido então adolescente…”.


O escritor lembrou um bombeiro voluntário, o divertido Justino Lopes Nogueira, natural de Santa Marta de Penaguião, que foi conhecido por falar com erros gramaticais. Não se distinguiu não pelas suas proezas heróicas, mas antes pelos seus burlescos e impagáveis comentários.


Em “As anedotas do Justino”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, traçou um breve retrato deste humilde 1º patrão – hoje equivalente ao posto de Chefe -  dos bombeiros, à mistura com palavras de ironia e muita  ternura pela sua  humilde figura.


“Bem faz o António Guedes, recordando a Régua do seu tempo. Oxalá o pulso lhe não arrefeça tão cedo para continuar a recordá-la com invejável fluência e graça. Oxalá…
Aqui há tempos, lembrou António Guedes a extraordinária figura do bombeiro Justino. Digo extraordinária, porque não houve quem lhe chegasse aos nós em cretinismo.
Boa figura física tinha o nosso homem. Sólido, com as suas carnes sobre o enxuto, garganta bem timbrada… Mas, não abria a boca sem dizer asneira.


- Comi hoje perdiz com molho de pilão. Soube-me pela vida…
Se disse pilão, quis dizer vilão. Toda a gente sabe que o molho de vilão casa bem com a perdiz.


-Fui à feira. Não estava lá grande coisa. Se não fossem os suíços…
Quis dizer suínos. Mas, coitado disse, suíços.


-Deu-lhe de presente uma apendicite.
Não lhe chegou a língua para dizer pendentif – adorno feminino pendente ao pescoço – por aí pingente.


-Sempre simpatizei com o seu panorama…
Cumprimentou assim um político da época. Mas, em vez de dizer programa, disse panorama. Pouco tempo depois, emendou a mão, chamando programa ao panorama. Que lindo programa!


O Cinema, naquele tempo, oscilava, tremia… Tremia como criança.   Oscilava… Mas, o pobre Justino, que tinha no ouvido, como pulga, o verbo oscilar, deitou cá para fora aperfeiçoado em urcilar.


À gipsófila, que então se pronunciava gipsòflia, planta de flores miudinhas, chamava ele, de modo grandioso… pisgatòfilha!


Não sairíamos daqui hoje se quiséssemos completar o rol de tanta asneira.   Completem-no os velhos, que porventura se lembrem do Justino.
Falta apenas dizer, neste lugar que teve carreira politica, no cargo de regedor, por sua honra, que o atestado supra é pobre.
Homem assim não podia ser só regedor. No declínio da primeira república, subiu de posto. Foi administrador do concelho de Santa Marta de Penaguião. Falta saber se também foi ministro.”


Quem o escritor lembrou de forma comovente na crónica  “Figuras de Barro - Os Bombeiros” (in Manta de Farrapos-1957) foi  o primeiro Capelão dos bombeiros da Régua,  a figura bonacheirona  do Padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges e o dia triste do seu funeral, quando  ia  a caminho do cemitério do Peso.


“Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, a caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras - tinha eu sete anos.
Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.
O Padre Manuel Lacerda foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me de o ver conversar com meu pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.
Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar.    Deixou, na Régua, essa tradição benigna.
O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar…”


Embora João de Araújo Correia não o tenha confessado, o seu pai António da Silva Correia, solicitador encartado, republicano convicto, nascido nas Caldas do Moledo, foi um dos bombeiros da velha guarda. Tinha pertencido, por algum tempo, ao corpo de bombeiro, mas o seu porte físico não era compatível com a acção exigida a um bombeiro.


Como seu pai deixou guardou a farda de bombeiro e seus adereços no baú das recordações, foi aí que o escritor encontrou a inspiração para o recordar, comovidamente, em “Figuras de Barro - Os bombeiros” (In Manta de Farrapos - 1957),  publicado, originalmente,  no boletim “Vida por Vida”.


“Meu pai tinha sido bombeiro voluntário. Mas, dotado por aí de lenta agilidade, sempre meticulosamente pausado, é crível que as obrigações de bombeiro, subir e descer escadas, de agulheta em punho, em cima de um telhado, fossem incompatíveis com o seu eu, isto é, com o seu físico e o seu moral. Sei que pouco tempo foi bombeiro. Desertou do apito, mas continuou ou fez-se contribuinte. Foi-o até à hora da morte.
Da actividade bombeiril do meu pai, ficou em minha casa, durante algum tempo, uma recordação. Foram os botões, as charlateiras e umas insígnias do uniforme. O que brinquei, com estas maravilhas amarelas, meio oxidadas, só eu sei… O que não sei é como se perderam. Sei que foram, uma após outra, imitando o soldadinho de chumbo do conto prodigioso.
Mas, se o soldadinho de chumbo regressou, para fazer das suas, elas coitadinhas, não regressaram. Vivem apenas na minha memória, isto é, no passado, que se faz presente quando eu o chamo.
Sempre que brincasse com os botões, as charlateiras da farda do meu pai, dizia entre mim: o papá foi bombeiro. Dizia-o como se o tivesse visto fardado, em dia de grande gala, numa formatura resplandecente. Dizia-o por intuição das charlateiras, insígnias e botões meio oxidados, mas ainda áureos bastantes para suscitarem orgulho no cérebro infantil. Se tivesse visto o papá numa parada, com o capacete a arder, numa fogueira de sol, com certeza que a minha vaidade se teria tornado insuportável.
Um homem de luvas brancas, com machado de prata às ordens e a cabeça adornada com um elmo de ouro, não é um homem. É um semi-deus”.
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
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