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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

LOURENCINHO

Nas velhas de caixas de madeira, onde se guardam os documentos da AHBV do Peso da Régua encontramos, por mero acaso, uma carta com a alusão de particular, datada de 18 de Agosto de 1959, endereçada ao Lourencinho, como era conhecido pelos amigos, o Comandante Lourenço Pinto de Almeida Medeiros que, desde 1949, estava a comandar os Bombeiros da Régua.

Se a carta fosse correspondência particular, como sugere o seu cabeçalho, ou revelasse segredos privados e de foro íntimo da privacidade dos destinatários, não teria interesse em dar conta da sua existência nem sequer em divulgar o seu assunto.

Nada disso está em causa nesta invulgar carta que o tempo não esqueceu. O que se escreve nela é um tema ainda actual. A direcção, como órgão social da administração da Associação, tem a obrigação de escolher o comandante entre as pessoas mais qualificadas, assim como o pode substituir e exonerar, dentro de critérios aceitáveis e justos.

Ora, o assunto abordado, com a máxima cordialidade, diz respeito as relações entre a direcção e o quadro de comando dos bombeiros. Como matéria da gestão da Associação não deixa de ter um interesse público e, sobretudo, um valor histórico. Documento de rigor e maior precisão dos factos, esta carta pode ajudar a entender as vicissitudes de uma determinada época, a mentalidade e capacidade dos dirigentes e dos seus bombeiros, as soluções encontradas para resolverem um dos problema mais complicados, como é o processo de nomeação de pessoas no cargo de comandante. O assunto desta carta estava relacionado com uma difícil e atribulada sucessão de um comandante, que apesar dos seus 80 anos de idade, não queria abdicar das suas funções.

Quem escreveu esta missiva, num registo penoso e sofrido, pensada nas palavras e nas ideias, não assinou a cópia que zelosamente um funcionário administrativo arquivou. Lendo-a com atenção, a correcção e urbanidade do seu estilo, a cordialidade, pensada para não melindrar vontades, denuncia ser o Dr. Júlio Vilela, distinto advogado, o seu autor, que era o presidente da direcção. As suas palavras são o retrato de um dirigente inteligente que, com diplomacia procurava uma saída que não magoasse o comandante Lourencinho, que não queria não ver que o seu tempo tinha acabado. Ela testemunha um caso, onde prevaleceu o bom senso, pelo que vale a pena fazer a sua completa transcrição:

“PARTICULAR - 18 Agosto 59

Meu Caro Lourencinho:

Há já mais de três anos que o Inspector de Incêndios da Zona Norte insiste com a Direcção da Associação no sentido de o meu Ex.mo Amigo passar ao quadro honorário.
Como sabe, nunca diligenciei junto de si dar execução a esse desejo, pois sempre procurei poupar-lhe qualquer incómodo.
Como o Inspector tivesse dado conta de que não me propunha tomar uma iniciativa dessa natureza, acabou por nos negar, no ano presente, a concessão de qualquer subsídio, invocando para tanto a circunstância de nos termos recusado a realizar a sua substituição.
É claro que, ante uma medida tão altamente prejudicial para os interesses da Associação, procurei avistar-me pessoalmente com ele e, após demorada entrevista propôs-se ele convidar o meu Ex.mo Amigo a ingressar no quadro honorário, no que, segundo, afirmou, cumpria as directrizes dimanadas do Conselho Nacional do Serviço de Incêndios.
E assim, no dia 8 do mês corrente recebi um ofício do Inspector que acompanhava a cópia de um outro dirigido ao Lourencinho e tendente à sua passagem voluntária ao quadro honorário.
Durante alguns dias aguardei o recebimento da petição respeitante a essa passagem, mas, até ao presente, nenhuma comunicação me foi sequer dirigida.
A pressa com que aguardava esse recebimento filia-se na esperança de que o Inspector, efectuado o seu ingresso no quadro honorário, desse satisfação ao subsidio por nós solicitado.
Como o tempo passou e me cabe a responsabilidade de velar pelos interesses da Associação, decidi convocar reunião extraordinária da Direcção, afim de o caso ser, apreciado e ter uma solução adequada.
No decorrer desta reunião, alvitrei que ela se suspensa, pois pretendia dirigir-me ao meu amigo e contudo o que aqui deixo relatado, no propósito de me auxiliar a resolver um assunto tão delicado.
Duas atitudes poderia tomar a Direcção substitui-lo ou demitir-se.
Mais facilmente ela optaria pela segunda, não certo é que a nenhum de nós anima o propósito de praticar qualquer acto que por si possa ser como traduzindo menor estima e respeito.
Quais as consequências, porém, a que conduziriam a nossa decisão sabendo que teríamos de expor as razões que a ditavam?
Por outro lado, onde iríamos desencantar as pessoas, cientes de antemão que lhes seria negado qualquer subsídio enquanto o Comando permanecesse o mesmo, estariam prontas a gerir os destinos da Associação?
O Lourencinho - o que dos dois é bem sabido – vota à Associação um carinho e uma dedicação que os seus 63 anos de serviço ilustram escancaradamente.
Não deseja, certamente, que ele venha a ser prejudicado pela forma que os factos claramente patenteiam.
Por isso mesmo, e com os olhos sempre postos na defesa dos seus interesses e no seu engrandecimento, peço-lhe embora recalcando a amargura que o deve tomar, que satisfaça o convite que pelo Inspector lhe foi dirigido, isto é, me enviar seu pedido de passagem ao quadro honorário, poupando-me assim a um desgosto sem par na minha vida.
Agradeço-lhe que me faça tal envio até ao próximo sábado, dia 22.
Entretanto, aceite os protestos de muita estima e consideração do….”

Não sabemos se esta carta chegou às mãos do Lourencinho. O mais seguro foi que a tenha recebido amarguradamente, e mais por estima e consideração, aceitava o conselho amigo para apresentar o seu pedido de passagem ao quadro honorário. Informava o jornal “Noticias do Douro”, de 30 de Agosto 1959, que a Direcção o tinha louvado e “que assim lhe quis prestar as suas sinceras homenagens, manifestando o seu desgosto por tal afastamento, só devidos a motivos de saúde”. A comandar os bombeiros ficava interinamente o Chefe Claudino Clemente, depois do 2º Comandante António Guedes ter recusado o convite de substituir o seu amigo Lourencinho.

A verdade, como agora se sabe, não era a que saía em forma de noticia para o público. O que era verdade, é que terminava ciclo e outro ia começar no comando dos bombeiros da Régua. O velho comandante não tinha preparado um sucessor para o seu lugar. A direcção procurava nomear um comandante que fosse “Comandante”, e não uma figura histórica. Em 3 de Outubro de 1959, com o visto do Inspector de Incêndios, o jovem Comandante Carlos Cardoso, com 35 anos de idade, tomava posse como comandante e, a partir daí, tudo ou quase tudo mudava, com novos métodos na formação e mais equipamentos de combate a fogos e de transporte de doentes.

O Lourencinho não teve tempo para ver as mudanças do seu sucessor. Morria triste e magoado, em 12 de Dezembro de 1959. Mas morria com a sua paixão pelos bombeiros. Se o tivessem deixado, o fim da sua vida seria numa camarata do quartel, ao lado dos bombeiros, que foram a sua grande família, a quem devotamente se dedicou ao longo de 63 anos.

O Lourencinho tinha alma de bombeiro, alistado em 1896, ainda no tempo da monarquia, tinha sido voluntário com alguns dos fundadores da corporação. A sua dedicação e carinho aos bombeiros fizeram acreditar que podia a ser um comandante para a vida inteira.

O velho comandante foi vítima de um sistema perverso. Se a intenção do Inspector de Incêndios de quer um novo comandante na corporação da Régua não se podia censurar, já o mesmo não se pode dizer do seu método para atingir esse fim, esse sem dúvida muito reprovável. A Associação merecia ser tratada como mais respeito. Dificilmente se entendia – mesmo ainda hoje – que Inspector de Incêndios tenha decidido, inexplicavelmente, não atribuir os devidos subsídios enquanto o comandante se recusasse a ser substituído. Como também, não devia ter ignorado os 63 anos de voluntariado do Lourencinho, a sua folha notável de serviços, onde sobressaía uma das mais altas condecoração do Estado, Cavaleiro da Ordem da Benemerência.
Foi isso que disse, por outras palavras, o escritor João de Araújo Correia ao evocá-lo num dos seus escritos do livro “Pátria Pequena”: “O Lourencinho, reguense nato, inteligência circunscrita a ideias intramuros, coração transbordante de paixões locais, Bombeiros e Festas do Socorro, foi excepção na Régua devido à sua ingénita delicadeza”.
- Colaboração de J. A. Almeida* para "Escritos do Douro" em Dezembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 17 de Dezembro de 2010
LOURENCINHO
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
LOURENCINHO

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Memórias do Comandante Lourencinho

Num aditamento ao texto que escrevi há três ou quatro semanas e que aqui se publicou, eu disse que o mesmo ia ser escrito no português da minha escola. Pois o texto de hoje obedece aos mesmos princípios, seja pela idade que vou tendo, seja pelo respeito aos bons dicionários que tenho na biblioteca. Adiante…

Depois da escola que me ensinou a ler Camilo ou o sermonário do padre António Vieira, continuei os estudos na Faculdade de Medicina do Porto, rés-vés o hospital de Stº. António. Foi por esse tempo que conheci o senhor Lourenço Pinto Medeiros, o Lourencinho, de boa memória. Também por esse tempo, nas férias grandes ou pequenas, eu deixava para trás o casão da Faculdade e vinha para a casa paterna, ou avoenga, casa de quinta, no lugar de Remostias. No Porto ficavam os livros de estudo, anatomias, patologia geral, embriologia, obstetrícia, propedêuticas, e por aí fora, todos eles em repouso e entregues a si mesmos, como se cada qual fosse uma leira de terra em pousio.

Gostava de trazer comigo, a boa companhia do tratado de Fisiologia, só para continuar os estudos em dias feriados… O funcionamento do corpo humano, os seus segredos e interrogações, até alguns milagres, tudo isso me fascinava e tudo isso chegou a ser tema de amenas conversas com o Lourencinho, ali na tabacaria de meu pai, na rua de Serpa Pinto.

Era nas férias grandes, naquelas manhãs ou tardes de um verão canicular que muitas vezes eu deixava para trás a meia-encosta de Remostias, toda ela com sucessivos quadros de uma natureza aprimorada, e vinha por aí abaixo até ao centro da Régua, mesmo no Agosto que dia- a-dia se ia chegando às vindimas, já com tantos e tantos cachos aflorados de oiro e de pintor. Feito vádio, modo de dizer, vinha até à Régua, eu e o tratado de Fisiologia, a fazermos uma pousada na tabacaria de meu pai. Era ali que se encontrava quase sempre o Lourencinho, sempre bem vestido, fato de bom talhe, gravata a condizer, sapatos brilhantes de bom lustro.

Na tabacaria, no espaço destinado ao público, havia um banco corrido de três ou quatro lugares, encimado por um largo espelho de cristal e ladeado por duas estantes expositoras, coisa rara e talvez única em qualquer outro estabelecimento da Régua. Meu pai, um diletante, de mais a mais com um apurado sentido da cultura, entendeu que o comércio de tabacos por junto, era negócio de toma lá dá cá, negócio nada marralheiro e a pedir algum espaço de descanso e de convívio.

O banco, sendo corrido, naturalmente rectangular, passou a ser um círculo de diálogo e de cultura. Era o banco do Lourencinho, afora um ou outro freguês que nele descansasse de uma longa caminhada. Sentado no banco o Lourecinho fazia horas e fazia-as diariamente, cioso de algum sossego, sei lá se de alguma secreta solidão e a deitar contas à vida. Fumava cigarros atrás de cigarros e olhava a rua com olhos distantes, mesmo inexpressivos, como se a retina estivesse virada para dentro de si mesmo.

Tirando os dias de feira, o quotidiano da rua era o habitual, um sobe e desce de automóveis, carros de bois, carretas de mão e gente que ia à sua vida, novos e velhos, cada qual integrado no andamento do mundo.

Muitas vezes eu subia ao andar da Associação Comercial a estudar Fisiologia. Depois vinha fazer horas de espera junto do Lourencinho que logo me perguntava: - Então, já estudou? Continue… continue, não desista. Conversávamos então sobre vários aspectos da fisiologia humana, coisas que ele gostava de ouvir e que lhe ateavam um fogo de curiosidades. De espanto em espanto, como que se deslaçava nele uma qualquer timidez que, se não era medular era própria da sua postura intimista.

O bombeiro Lourencinho, já comandante da Corporação, não era atreito a exibicionismos nem a protagonismos, muito menos a fogo de vistas. Mas amava os bombeiros no seu todo e gostava de se sentar no banco da tabacaria a conversar com meu pai.

Assim enraizado, é crível que fosse o Lourencinho quem convenceu meu pai a escrever uma qualquer peça de teatro, peça que, levada à cena, poderia render dinheiro bastante para dar seguimento às obras do quartel.

E, de facto, meu pai escreveu a letra e a música da opereta O Milagre do Cruzeiro que, logo na estreia, foi um sucesso, um acontecimento artístico a despertar por aí além muito entusiasmo e muitos aplausos.

Foi uma sugestão do Lourencinho? Talvez… talvez... isto nos animosos tempos que já lá vão e nos bons propósitos de um espaço que já não é.
- Manuel Braz de Magalhães
Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 7 de Novembro de 2012. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Delicadeza

Faleceu a 12 do corrente, nos subúrbios desta vila, um homem delicado. Melhor dizendo, faleceu a 12 do corrente, nos subúrbios desta vila, um homem que exerceu, durante mais de oitenta anos, a delicada arte de ser delicado. 

Parece que o exercício dessa função espiritual o conservou moço até da cova. Tinha oitenta anos como se tivesse apenas cinquenta, mas, direitos e elegantes como guias de salgueiro. 

Toda a gente sabe ou adivinha que o nosso morto é o Lourenço de Almeida Pinto Medeiros, o Lourencinho, como lhe chamávamos todos, consoante o uso do Norte. O 'inho', entre nós, não é mau signo de equívoca personalidade. É tributo que se paga, em moeda de afectivo respeito, a homem que o mereça. 

O Lourencinho, reguense nato, inteligência circunscrita a ideias intramuros, coração transbordante de paixões locais, Bombeiros e festas do Socorro, foi excepção na Régua devido à sua ingénita delicadeza. 

Por esse motivo, além de outros, faz imensa falta a este burgo comercial, tão atarefado, que não considerou ainda que a cortesia é sinal de civilização. 

Terra que não saiba cumprimentar, que não perdoe pequenas fraquezas a naturais e estranhos, que não dissolva mesquinhos ressentimentos, não vença a iníqua antipatia que lhe inspiram os melhores filhos, é terra que não passa de esboço colonial de provável povoação.
É tempo de a Régua se orgulhar de cidadãos polidos como o Lourencinho. Ele e poucos mais, que felizmente por aí ficaram, uns ricamente vestidos, uns pobremente vestidos, provam que a Régua não é tão árida de cortesias como a pintam os seus hóspedes mais sensíveis. O Lourencinho foi fidalgo de natureza, que é a maneira menos falível de ser fidalgo. 
- João de Araújo Correia, Dezembro de 1959.

Nota: Esta crónica, inicialmente publicada no jornal Vida por Vida, antigo órgão informativo da AHBVPR, faz parte do livro Pátria Pequena, editado pela Imprensa do Douro (1977).

Mais textos sobre o Comandante Lourenço de Almeida Pinto Medeiros neste blogue, ao longo do tempo:
Clique nas imagens para ampliar. Imagens e texto cedidas pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Retrato de um velho bombeiro: Zé Pinto

(Clique na imagem para ampliar)

Já lá vai o tempo em que os garbosos bombeiros da Régua desfilavam ao som de clarins e tambores, pela rua Serpa Pinto acima, em direcção ao edifício dos Paços do Concelho, para apresentação de cumprimentos de agradecimento à edilidade, fieis à tradição, num acontecimento que repetia no dia 28 de Novembro de 1959, a festa do 79º aniversário da fundação da Associação.

Este retrato pertence a um bombeiro desse tempo, é do José Pinto Rodrigues, mais conhecido entre nós, por Zé Pinto, um bombeiro do quadro de honra. Estava encaixilhado numa bonita moldura de metal dourado, em cima de uma estante, em sua casa, onde tem um santuário do seu passado e das memórias mais cintilantes da sua vida.

O Zé Pinto é um bombeiro do tempo em que o quartel estava instalado na rua dos Camilos sob o comando do senhor Lourencinho. Entrou para o corpo activo, em 1957, a pedido do senhor Teófilo Clemente e do irmão, o Chefe Claudino. Não lhes disse que não e, depois de alistado, passou a ser, para sempre, mais conhecido pelo bombeiro número 47.

A sua memória guarda muitas recordações em esteve ao quadro activo. Nunca esqueceu os velhos camaradas como Manuel “Ciganinho”, Abílio “Barão”, Peixe, “Bola de Anta” e o “Zé Grande”, ainda vivo, que, no seu entendimento, considera ser um bombeiro de alto gabarito. Gostou de conhecer o Dr. Vilela, um grande homem e um santo, o Chefe Claudino, muito competente, o zeloso quarteleiro Zé Pinto e os comandantes que mais gostou de trabalhar, o Camilo Guedes e o Lourenço de Almeida.

Emociona-se com nostalgia ao recordar uma noite em que ficou no velho quartel, a dormir na maca da ambulância branca, a Rollyn-Pillan. Sua mãe, que não fora avisada por ele nem pelo quarteleiro, ficou preocupada e deu-lhe no dia seguinte uma boa repreensão.

Conta, com um brilho nos seus olhos, como foi o incêndio deflagrado numa mata de Sedielos, em que a escuridão da noite o fez cair ao fundo de um buraco, onde lhe valeu a ajuda de um seu colega, o bombeiro número 48.

Fala com vaidade da qualidade da instrução e dos exercícios ensinados pelo Chefe Pinto, instrutor do Batalhão de Sapadores do Porto, que o pôs a escalar a parede frontal do quartel, cima do telhado, através da escada portuense, finalizando a prova com sucesso, apesar de sentir as pernas a tremer como varas verdes. Tinha coragem, gabava-o o grande instrutor que vinha do Porto ministrar formação à Régua.

Lembra os incêndios ocorridos na cidade que causaram mais pânico e avultados prejuízos, o do bazar de quinquilharias do Alemão, na rua José Vasques Osório e outro numa casa da rua das Vareiras, que enfrentou com uma agulheta de 60 milímetros nas mãos.

Revive o dia em que desfilou nas ruas de Viana do Castelo, ao fim da tarde quente, no fim deu um congresso nacional de bombeiros, que aí teve lugar.

Cada uma das suas lembranças traz o brilho das suas emoções e um ideal valioso - fazer sempre o bem sem saber a quem – pelo qual se orientou, se fez homem maduro e conquistou as maiores alegrias, admitindo que, na ajuda ao seu semelhante, atingiu a maior felicidade.

Ainda hoje, tem pendurado à entrada da sua casa, na travessa da rua Alegria, um azulejo com um pensamento que lhe conforta a sua alma: “Quem faz o bem, Deus faz bem”.

Sente-se um indescritível conforto a ouvi-lo contar as suas histórias. São quase de 25 anos de voluntariado. Não está no activo mas é como estivesse. Diz-nos com um lágrima no canto do olho que um bombeiro nunca deixa de ser bombeiro…. Já não tem uma farda que lhe sirva, mas se a velha sineta voltasse a tocar, como no seu tempo, ele sairia a correr pela rua acima, para ser dos primeiros bombeiros a chegar ao fogo. Afinal, recordar, como se costuma dizer, é mesmo viver…!

O velho bombeiro Zé Pinto, à beira dos 85 anos (nasceu em 1 de Janeiro de 1925), é, hoje, um dos heróis dos gloriosos bombeiros da Régua. A sua figura não pode morrer no coração das pessoas, como ele, cheias de humanidade. Ele não imagina, mas nós temos a certeza de que é um símbolo de muitos outros homens esquecidos, sempre ocultados pela fama dos nomes ditos sonantes, que se alistaram nos bombeiros da sua terra. Pelo seu exemplo de altruísmo, coragem e abnegação estes bombeiros sem nome também se vão eternizar na recordação das gerações futuras.

O retrato não fixa só um desfile com os sons do tambor que, na tropa, o Zé Pinto aprendera a tocar. Assinala muito mais do que isso. É a memória de um passado que nunca passa. Aqueles homens permanecem iguais e acreditam na universalidade e no valor da causa do voluntariado ao serviço dos que precisam de protecção e socorro. Evoca a perenidade dos homens generosos, alguns definitivamente fora deste nosso mundo, mas que cá deixaram a sua marca de altruísmo, exemplo a seguir pelas gerações vindouras.

Quem acredita que na vida não há senão um tempo efémero, uma breve passagem, está grato ao velho bombeiro Zé Pinto. Eu estou! O seu lugar fica marcado nas memórias de um passado que, por muito que teime em passar, resiste sempre em pequenos redutos do futuro.

A fama dos velhos bombeiros da Régua, regista-a com eloquência e muita erudição, o Dr. José António de Sousa Pereira, famoso médico, na sua crónica “Para parar três badaladas”, inserta na revista do centenário da associação, que se transcreve o seguinte:

“Para seu desenvolvimento a Régua, mercê de um punhado de boas vontades, firmes e válidas, não foi a última a ser dotada da que se passou a denominar AHBV do Peso da Régua.

Nascida no menos que modesto prédio, ainda existente no Largo dos Aviadores e provida de escasso material, que a edilidade reguense lhe cedeu, contou desde o início, no seu corpo activo, com homens que, sob a responsabilidade do nome, passaram a gozar de um prestígio, que lhe advinha de actos beneméritos, em ordem a conferir à sua associação a fama que, ao actual corpo activo, cabe manter se não dilatar. Esta fama foi encontrá-la em Lamego, na recuada época da nossa adolescência, em que, naquela cidade, estanciámos durante sete anos. A rua de Almacave, no pendor de base do morro encimado pelo castelo medieval, em torno do qual se aninha o primitivo burgo, coetâneo de Fernando Magno, exibia prédios esventrados, portas e janelas como órbitas vazias, em paredes calcinadas, por apocalíptico incêndio.

Diga-se então, aí que, a não intervirem os bombeiros da Régua, a Olaria iria, de enfiada. Quanto pode uma minguada corporação em efectivos, bem comandados em que a disciplina, livremente aceite, gera autênticos cidadãos! Escola de civismo foi, pois, e confiamos que o será, sempre, sem o qual as pátrias não são mais que expressões destituídas de sentido. E os reguenses ao admirarem, íamos dizendo, tais como chouans a Marie Jeanne, que cobriram de flores, uma bomba braçal novinha em folha, que o quartel de cavalaria expunha, sentiram que estavam com os seus soldados da paz, como estes se identificavam, com eles.

(…)

Hoje os nossos bombeiros dispõem de instalações, que honraram a terra, onde se implantam. Catedral do bem, num ópido onde os valores culturais não abundam, emergentes que são, do passado obscuro que, somente, nos últimos dois séculos se projecta em porvir auspicioso, luta e vai transpondo, com a persistência dos obstinados, os escolhos, que se interpõem, a quem demanda uma meta inatingível tal é da verdade absoluta – peculiar às grandes realizações humanas.

(…)

Existiram outrora, nos lares reguenses, no recesso dos oratórios dos antepassados, encaixilhados a preceito, sinais de incêndio, mediante os quais os soldados da paz e a população – que colaborava – ficavam cientes da zona em que se verificava o sinistro, sinais tangidos, pelos campanários locais. Estes sinais sobrepunham-se a uma notificação convencional – para parar três badaladas. Se a convenção era prática, não se compadecia, todavia com a realidade, pelo que o devoto abrenúncio nos vem à boca, nos termos em que Cervantes remata o preâmbulo da sua obra imortal, mediante o consabido”.

Para além da história dos bombeiros da Régua, o retrato do Zé Pinto permite a fazer um reencontro na memória com alguns dos lugares da cidade, as paisagens urbanas perdidas para sempre - como os frondosos plátanos e o coreto que havia no antigo jardim Alexandre Herculano - que suscitam em nós um sorriso de espanto, confrontados com as transformações de um território que julgávamos conhecer….!
- Peso da Régua, Fevereiro de 2010, J. A. Almeida. Atualizado em Julho de 2010.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Recordação de uma visita a Castro Daire

Aos Bombeiros de Castro Daire, de todos os tempos.
À memória dos Comandantes Lourenço Pinto Medeiros e António Guedes Castelo Branco

No passado os Bombeiros da Régua costumavam organizar viagens pelo país fora, levando uma pequena representação nos seus melhores carros de incêndios. Algumas dessas viagens tiveram como destino uma vista à Corporações de Bombeiros de terras vizinhas, umas nas redondezas e outras para lá dos limites da região demarcada do Douro. Se no decorrer do tempo umas foram esquecidas, outras já ficaram lembradas em fotografias quase sempre tiradas num momento de descontracção e de demonstração de companheirismo e muita dedicação à causa do voluntariado.

Cada visita era mais um dia festa na terra visitada, com uma animação colorida que os bombeiros costumam dar com as suas fardas mais asseadas, capacetes reluzentes, acompanhado pelo ruídos das sirenes estridentes dos carros, com a população nas ruas e nas janelas a assistir à sua passagem, como viesse para venerar os seus santos protectores. Quando o povo voltava as suas casas, a festa recomeçava no quartel, com os abraços fraternais, cumprimentos calorosos e as saudações de cortesia.

Esses homens de condição humilde escreviam assim momentos únicos de fraternidade, com o seu coração cheio de generosidade. Entre eles estreitavam-se laços de amizade e trocavam-se afectos como se todos eles pertencem à mesma família de sangue. Os Comandantes de cada corporação local aproveitavam para elogiar uma atitude mais altruísta e abnegada dos seus subordinados num incêndio mais perigoso e, outras vezes, rememoravam os tempos idos com saudade e nostalgia.

Eram outros tempos! …

A sociedade civil gostava dos seus bombeiros, fossem eles de onde fossem, recebia-os com recepções triunfais, a que se associava a classe política, com o Presidente de Câmara sempre presente para receber os ilustres visitantes, dar-lhes as boas vindas e fazer um discurso com palavras de respeito e sincera gratidão. Desse imaginário faz parte uma visita que os Bombeiros da Régua fizeram à vila de Castro Daire, no dia 6 de Junho de 1948, onde foram recebidos em festa, que ficou registada, pelo menos, em duas fotografias marcadas com este sugestivo título: “Recordação da Visita a Castro Daire – 6-6-1948- Aos Bombeiros Voluntários do Pêso da Régua – Os Camaradas de Castro Daire”.

Lembrei a existência destas fotografias, durante 41º Congresso dos Bombeiros Portugueses, realizado em Outubro de 2011, na Régua, ao presidente da direcção dos Bombeiros de Castro Daire, o meu amigo António da Conceição Pinto. Mostrou-se surpreendido com uma raridade que ele desconhecia e me prometeu mandar averiguar se elas também faziam parte do arquivo da sua associação. Mais tarde conformou-me que ali não havia nenhuma dessas fotografias nem sinais dessa visita. Quando lhe cedi as cópias dessas imagens e as observou atentamente, informou-me que só reconheceu da sua corporação, o então 2º Comandante Jaime Vitelo, vestido à civil, ao lado dos comandantes da Régua.

Quis saber mais e observar com mais atenção cada fotografia, confiante de encontrar alguém retratado que me fosse familiar. Numa delas, reconheci o Comandante Lourenço de Pinto Medeiros, tratado carinhosamente por Lourencinho, e o 2º Comandante António Guedes Castelo Branco. Na outra fotografia, aqueles rostos eram-me estranhos, o que me levou a concluir ali estavam retratados apenas os bombeiros de Castro Daire, fardados a rigor e perfilhados no Jardim Municipal, hoje denominado Jardim 25 de Abril.

Mas queria saber mais do pouco que essas fotografias me diziam. Socorri-me então  do excelente livro “Machado em Punho - 130 anos dos bombeiros de Castro Daire”, da autoria de Adérito Pereira Ferreira, bem escrito e bastante recheado de documentos e imagens de qualidade, que li ávido de encontrar uma alusão, mas apenas deparei uma referência à Régua, a uma reparação do pronto-socorro  que os  bombeiros  castrenses fizeram na oficina Janeiro & Irmão.

Para pena minha, aquela visita dos Bombeiros da Régua era assunto completamente omisso. Não desisti de encontrar um relato dos seus principais pormenores. No arquivo do Noticias do Douro, nas edições de 13 e 27 de Junho de 1948, pesquisei duas notícias. Escolhia a que foi reproduzida do diário O Comércio do Porto e que, pela sua importância histórica, aqui passo a transcrever na íntegra:

“Castro Daire, 9 – Às primeiras horas da manhã, do passado dia 6, começou a correr celebre a notícia de que uma surpresa, uma agradável surpresa havia sido preparada aos habitantes de Castro Daire. De facto, pouco depois, foi com alvoroço que se tomou conhecimento de que, dali a momentos, Castro Daire seria visitada pela briosa Corporação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua e de alguns reguenses amigos da nossa terra.

Assim sucedeu, de facto. Cerca das 14 horas, algum tempo depois de ter sido montada pelos amáveis visitantes, no Jardim Público, uma instalação sonora, através da qual a noticia se confirmou, deu entrada na vila, triunfalmente, um ruidoso cortejo de carros com as esplêndidas e modernas viaturas dos Bombeiros Voluntários da Régua, seguidas do pronto-socorro os Voluntários locais e de um outro carro com a Direcção dos nossos Bombeiros que foram fora da vila ao encontro dos reguenses. Seguiam-se outros automóveis com numerosas pessoas das duas terras. A caravana percorreu a vila de baixo de saudações tão delirantes como sinceras da população que, em grande número, enchia as ruas, não obstante o imprevisto de tão agradável acontecimento. Nos prédios, os seus moradores quer às portas, quer às janelas, não se cansavam de manifestar-se.
Feito o trajecto, os visitantes dirigiram-se ao quartel dos nossos bombeiros, onde foram recebidos pela sua Direcção, Comando e Corpo Activo, tendo-lhe sido dadas as boas vindas pelo Sr. Presidente da Câmara, que em nome da Corporação local e do povo de Castro Daire, manifestou o seu mais vivo reconhecimento pela gentileza da honrosa visita que acabava de ser feita pelos Bombeiros Voluntários da Régua aos seus companheiros do ideal que tem por lema “ Vida por Vida”.

Fez votos pela prosperidade da terra amiga e da Corporação de Bombeiros, lamentando unicamente que esta visita não tivesse sido anunciada previamente, o que impediu que tivessem sido recebidos melhor e mais condignamente, como mereciam.

Em seguida, o Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua, agradeceu as boas vindas que lhes haviam sido dadas, recordando com saudade os bons tempos da Banda dos Bombeiros Voluntários de Castro Daire que – disse – era considerada também pelos reguenses, como Banda dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, dadas as boas relações de amizade e simpatia que sempre existiram entre reguenses e castrenses. Finalmente, no gesto tão cativante como espontâneo, pôs à disposição do Sr. Presidente da Câmara e dos Bombeiros de Castro Daire a veloz e moderníssima auto-maca a sua Corporação, sempre que disso houvesse necessidade para serviços de grande urgência.

Aplausos frenéticos de agradecimento se sucederam, tendo por sua vez o Sr. Presidente da Câmara voltado a falar para agradecer em nome de todos os castrenses tão grande gentileza. Pelo resto da tarde, visitantes e visitados, confraternizaram alegremente pela vila, ao som da bela música difundida pela aparelhagem sonora instalada pelos nossos hóspedes. E, ao fim do dia, foi com grande mágoa que os vimos partir, sendo acompanhados pelo pronto-socorro dos nossos bombeiros durante alguns quilómetros dentro do concelho. Dada a maneira amistosa como tudo decorreu, estamos convencidos que estes momentos reviverão sempre na memória de todos quantos tiveram a satisfação de senti-los.

Aproveitamos a ocasião de apresentar a nossa edilidade o seguinte alvitre. Dadas as grandes provas de amizade e dedicação, com que os habitantes da linda e progressiva capital do Douro, desde longos tempos, sempre têm distinguido e dispensado ao povo de Castro Daire e à nossa terra, não seria justo e merecido que a uma das ruas da vila fosse dado o nome de rua da Vila do Peso da Régua? Cremos que toda a população de Castro Daire receberia bem tal iniciativa – C”.

Mais que os pormenores, a razão dessa a visita dos Bombeiros da Régua está aqui toda desvendada pelo senhor “C”, certamente um jornalista natural de Castro Daire. Como aí se diz, esta visita teve como motivação, o lembrar de uma velha tradição, em que a Banda dos Bombeiros Voluntários de Castro Daire era considerada a banda dos Bombeiros da Régua. Parece que assim foi nos recuados tempos dos primeiros anos do Séc.XX. Mas não foi esse o único motivo, foi uma visita para levar a gratidão do povo da Régua à boa gente beirã de Castro Daire.

E assim se faz uma curiosa e interessante história que une duas associações bombeiros, quase da mesma antiguidade, não muito distante uma da outra que, durante muitos anos, mantiveram grandes ligações de amizades e uma tradição musical, e que jamais acabar, mesmo que a banda de música tenha deixado de tocar no quartel dos Bombeiros da Régua.

Quem sabe, se num dia destes, não faremos uma outra visita a Castro Daire para lembrar o passado e que, numa atitude generosa e solidária, àqueles briosos Bombeiros da Régua levaram à vila de Castro Daire, no dia 6 de Junho de 1948.

Ainda bem que dessa visita ficaram guardadas, até aos nossos dias, aquelas duas fotografias: quando não temos memória do nosso passado, perdemos sempre algo no futuro!
- José Alfredo Almeida*, 
Peso da Régua, Novembro de 2012


*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registam neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O Milagre do Cruzeiro

Tenho diante de mim o livrinho - programa referente à estreia da opereta O Milagre do Cruzeiro, com letra e música de meu pai António Rafael Magalhães. Nele se diz que a opereta foi escrita em Abril de 1950 e apresentada ao público em 11 de Novembro do mesmo ano no quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua.

Cinco anos antes tinha acabado a II guerra mundial e toda a gente vivia nas benquerenças da paz e duma permanente euforia. Por sugestão do Lourencinho, ao tempo comandante dos bombeiros e também a pedido de meia dúzia de componentes da Orquestra Reguense, meu pai lá se dispôs a escrever e a musicar uma opereta, coisa impensável nos seus horizontes artísticos. Mas, como quem se precata, começou a dar tento dos teatros do mundo que é como quem diz, o quotidiano do seu viver e das suas congeminações… Se nas horas forras do seu comércio de tabacos vinha até à porta da loja, a olhar a rua, o que é que via? Via o chamado Cimo da Régua com um polícia sinaleiro atento ao trânsito e via a novidade dos carros americanos, carros de bom tamanho e bons cromados sendo alguns conduzidos pelo novo-riquismo do volfrâmio. Nas costas do polícia era a sala de estar dos mirones e dos meninos bonitos, todos fazendo horas espreguiçadas e a olharem a tacanhez provinciana do mundo em derredor… E o Rafael Magalhães a dar conta do cenário.
No regresso à casa de Remostias passava junto da cadeia da vila, com seus janelões gradeados e onde se corporizava a responsabilidade de crimes maiores ou menores, sabe-se lá se alguma virtude escondida num corpo injustiçado. As celas escuras e soturnas recebiam uma esmola de luz e aconchego pela tardinha, à hora do sol poente. Seria tudo isto mais um capítulo, um novo cenário dos teatros do mundo? Seria, seria…

Um pouco mais adiante, num encruzamento de caminhos, era o bom dia ou a boa tarde das mulheres do soalheiro, isto se o tempo estivesse de feição e com boa temperança. Meu pai, Rafael Magalhães, respondia à saudação e reparava que elas se catavam umas às outras e espiolhavam o norte e o desnorte de vidas alheias… Se uma fazia meia, outra remendava o cu das calças do seu homem. Mas, todas elas integradas num resumo dos teatros do mundo e meu pai a congeminar até que chegava ao lugar das Fontainhas.

A partir daí não havia casas nem casebres nem sequer um arremedo de comparsas ou figurantes. A estrada de terra batida, ladeada de vinhedos, era chão afeiçoado a um cigarrinho de enrolar e às sementes que iam vicejando no ramalhete de uma história já pensada e já delineada. Disse-me um dia meu pai… Disse-me que as linhas e entrelinhas do enredo se revelavam no caminho das Fontainhas a Remostias, entre vinhedos, numa íntima comunhão com a natureza, como se aquele caminho fosse uma fonte de inspiração.
Chegado a casa, isolava-se na sala grande, sala propícia à leitura, à escrita e à música. Era ali o salão nobre das suas ideias, da sua criatividade e até das impressões que dia-a-dia se iam polarizando no seu cérebro. Havia ali um piano, uma flauta, um violino e um bandolim de quatro cordas. Dedilhava o bandolim e de pronto lançava no papel de música as notas compassadas e dançantes de um bailarico ou os acordes dulcificados de uma Avé Maria, tudo isso destinado ao canto e aos descantes da opereta. O enredo, esse tinha o romantismo tradicional, de mãos dadas com o realismo da época.
Os ensaios eram sucessivos e não se faziam à sobreposse. Faziam-se num ambiente de festa com a juventude e o entusiasmo de todos os figurantes.

A história do Milagre do Cruzeiro foi no dia 18 de Novembro,  no ano santo de 1950 e no quartel dos bombeiros onde se improvisou um palco e uma plateia num salão ainda inacabado. Foi ali que se assistiu ao êxito e ao sucesso de uma opereta que por onze vezes seria representada.

Se meu pai ressurgisse por aí, estou certo de que gostaria de ler e relembrar este memorial e até me dava a sua bênção. Mas isso, só por milagre dos milagres.
-  Manuel Braz de Magalhães, 24-11-12

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no jornal regional semanário 'O ARRAIS', edição de 12 de Dezembro de 2012. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Naquele meu tempo

O CORETO do extinto 'Jardim Alexandre Herculano'

Naquele meu tempo – digamos melhor, entre os anos de 1933 e 1943 – indo a minha idade dos 11 aos 21 anos, eu tinha um grupo de “amigos do coração”, junto dos quais eu,  nas redondezas, costumava satisfazer os meus prazeres, o da conversa de todos os dias, o dos passeios a pé até ao Salgueiral, o dos “copos” (com que nos desdenhávamos e onde havia do melhor…), o das idas até Além Douro, o dos pontapés na bola em qualquer sítio, enfim, os gostos de rapaz. Neste grupo, que me lembre, estavam o Carlos Cardoso dos Santos (que ainda não pensava servir como Comandante dos Bombeiros), o Engenheiro Joaquim Rodrigues Guerra (um amigo “malandreco”, que mais parecia ser ainda um menino…), o Rogério  (uma jóia de rapaz e, talvez, o melhor jogador  de futebol, filho da nossa terra, que a “parca” ceifou deste mundo com escassos 30 anos, vítima da tuberculose que, então, nos espreitava a todos…), o Cassiano (que ganhava a vida na loja do “Mumu” e de quem eu nunca mais nada soube) e mais um ou outro que, eventualmente, se aproximava deste nosso grupo, que era bastante fechado.

Em curtos períodos daquela década, acontecia nos afastarmos uns dos outros, por causa dos estudos fora da Régua ou por outros afazeres, muitas vezes eventuais.

Lembro-me com especial saudade dos passeios que dávamos até ao Salgueiral, muitas vezes quase até ao Moledo, melhor dizendo, até ao nosso campo das Figueiras, onde se iniciou, à falta de melhor, o Sport Clube da Régua. Fazíamos quilómetros e quilómetros sem darmos por ela, conversando saudavelmente sobre tudo e sobre nada, um dichote daqui, um dichote dali, aproveitando temas ocasionais, que iam do cruzamento com pessoas por quem passávamos até às ocorrências locais e nacionais de cada dia, e que desbravávamos até ao tutano… Outras vezes, aos fins de tarde, íamos lanchar (quantas vezes, quase jantar…) ao “Gato Preto”, na avenida João Franco, onde apreciávamos a boa “pinga”, que, frequentemente, acompanhávamos com umas coxas de leitão,  com umas iscas de bacalhau ou com umas sardinhas de escabeche, etc. e tal…!

Noutras ocasiões, virávamos as nossas passeatas para o sentido contrário, até à Ponte de Ferro, na qual parávamos e donde admirávamos a nossa terra, lá ao longe, e mirávamos o nosso lindo rio, claro... Raramente íamos para lá da Ponte, nela ficávamos, entretidos com o movimento, com os carros de bois, com pessoas que a atravessavam, assim nela ficávamos…

De noite, a cidade mantinha-nos dentro dela, com atractivos diferentes, mais íntimos, guardando-nos no café Imperial, se bem me lembro do seu nome, o único por ali existente. Nele, ficávamos até cerca da meia-noite, se tanto… Aqui, conversávamos urbanamente (boa noite, como passou e coisas deste jeito), ou espreitando uma rapariga que calhasse passar nas redondezas, quando, então, nos chegávamos a levantar da mesa para a apreciar melhor… No café, muito naturalmente, falávamos também dos futebóis, do Benfica e do Sporting, que o Porto ainda não tinha a corpulência de hoje, o que o Pintinho da Costa inverteu... Conhecíamos as futebolices pelas transmissões pela rádio, que a TV ainda não existia cá, pelas nossas bandas… Embora na urbe, não tínhamos tendências para bailes, que não os havia, salvo em raros ambientes familiares.

No verão era frequente irmos passar o tempo para a margem esquerda do rio, bem em frente da cidade. Tomando umas banhocas e secando ao sol benigno… Para lá chegarmos, utilizávamos a barca do “Carvalho”, que uma possante remadora movimentava.

Então, de que outras figuras da Régua me lembro? Verdadeiramente típicos, recordo-me do Porrório, um coitado, um modesto homem, quase sempre com uma “pinguinha” na asa – não muita, salve-o Deus, Nosso Senhor - um pobre estimado por toda a gente, uma verdadeira curiosidade. Refiro muitas vezes os seus encontros com o meu irmão Júlio, quando este regressava do seu escritório, perto do monumento dos aviadores. O Porrório costumava esperá-lo perto da loja do Borrajo, por onde pairava frequentemente. Quando o meu irmão chegava, era certo saudarem-se os dois com um “Vivó Benfica”, que logo tornava o Porrório mais “social”. Depois, aconteciam chorrilhos de disparates muitas vezes provocados por outras pessoas, que assistiam deliciadas e embevecidas à conversa que se  travava, como era costume. A gente que estava nas imediações do Borrajo, do Zé Pinto, da Padaria não deixava de se aproximar, fazendo monte. Depois, um pequeno cortejo iria desfilar, muito lentamente, até casa do meu irmão, na rua da Ferreirinha. Era assim quase todos os dias, ninguém se cansando com o palavreado que travavam, com o meu irmão sempre atencioso com o Porrório, de quem verdadeiramente era amigo e que muito estimava. Constituíam um espectáculo muito singular e atraente. Que paciência o meu irmão tinha, ele, uma pessoa tão diferentes na cultura e na mente!... A conversa acabava sempre com um cigarrito e com o fósforo que o acendia, que o meu irmão lhe dava, satisfazendo-se ambos. Mas, não esqueçamos o embaraço que assaltava o Porrório, quando o meu irmão lhe pedia que dissesse bem a palavra “inconstitucionalmente”, que o Porrório nunca foi capaz de pronunciar capazmente, antes gaguejando e gaguejando cada vez mais, como se atropelando a si próprio, proferindo uma palavra sempre diferente, que ninguém entendia… Depois, sozinho, continuava a proferir uns sons, rua fora.

Levados a sério estes encontros, eles proporcionariam interessantíssimos espectáculos “circenses”, com um palhaço rico e um palhaço pobre no máximo das suas capacidades histriónicas, a que todos adeririam com prazer e com respeito.

De outras figuras – que considero não propriamente típicas, mas sim algo “senhoriais“ e singulares, a  quem eu respeitava, não só por serem muito mais idosas do que eu era, mas mais por gozarem de excepcional prestígio entre os concidadãos – sou capaz de fazer algumas referências.

Antes de qualquer outro, refiro a figura de meu avô Gaspar Monteiro, homem prestimoso, um homem alto e forte, decidido, conceituado, que eu estimava com todo o meu coração e que para mim serviu sempre de exemplo que eu gostava de seguir. Seria sempre o meu preferido.

Talvez a seguir, lembro o doutor Antão de Carvalho, paladino da nossa região, que desfilava nas nossas ruas sob o olhar respeitoso de toda a gente, impressionando com os seus cabelos  muito alvos, apoiando-se na sua bengala, com passos cautelosos mas firmes. Como grande senhor que era, os nossos conterrâneos cumprimentavam-no, descobrindo-se à sua passagem. Criança que eu era lembro-me bem de sempre descer do passeio para lhe facilitar a passagem, enquanto ele me retribuía a atitude com um acenar de mão ou um sorriso, o que me sabia muito bem. Eu conhecia-o das relações que ele tinha com os meus pais e das conversas que tinham sobre as causas da nossa região, que, não as entendendo, me impressionavam, por serem longas e vivas. Deste grande senhor, paladino da nossa região, guardo uma imagem ainda muito viva, apesar de passados alguns 80 anos!...

Outra figura que retenho, menos seguramente, é a do Artur Martinho, homem com aparato de fidalgo, com algum tamanho, que desfilava teso como um perdigão, e que toda a gente respeitava.  Costumava parar pelas lojas do Zé Pinto e do Borrajo, no Cimo da Régua, onde ficava por horas e horas. Tinha um automóvel descapotável, que muito me impressionava. Era sua esposa, a senhora D. Branca, estimável protectora dos pobres da Régua, que gozava de enorme prestígio, como pessoa de bem.

Lembro-me de muitas outras pessoas da nossa terra. Do Lourencinho, por exemplo, figura ilustre dos nossos Bombeiros, que me dava nas vistas pela sua apresentação, como me lembro de outras, também ligadas aos Bombeiros, como o Claudino, o seu irmão Teófilo e o Coutinho, todos muito estimados pela população.

Fugazmente, lembro-me de muitas outras pessoas, afastadas de mim, principalmente pelas distâncias na idade, que nos separavam. Recordo-me, no entanto, do popular Dário, como bom caçador de perdizes que era, que morreu no rio Douro, numa cheia, ao ser apanhado pelo redemoinho que a ponte de pedra ocasionava, que lhe afogou o barquinho em que ia, exactamente quando se preparava para caçar uns patos bravos. Esta tragédia sensibilizou muitos reguenses.

Curiosamente, recordei – exactamente neste momento - o médico Dr. Ernesto Santos, que vivia uns metros acima do edifício da Câmara, passando na rua dos Camilos, montado num cavalo branco, a caminho de Poiares ou coisa semelhante, para lá do Corgo. Também para ele, o automóvel ainda não lhe estava à mão.

Aproveito para lembrar outro reguense que ficou extremamente popular, quando ousou inscrever-se numa “Volta a Portugal”, em bicicleta. Refiro-me ao Sotero, que ganhava o seu pão vendendo lotaria. Fez, na Volta, fraca figura: atacado por qualquer indisposição intestinal, ficou enfraquecido, mas conseguiu finalizar a prova, o que, para a gente da Régua, foi uma grande facécia. Coitado, sem médicos que especialmente o acompanhassem, que podia ele mais conseguir?

Houve outras figuras, que, na altura, me ofereceram especial atenção, talvez, principalmente, pelos laços familiares que me ligavam a elas. Não querendo excessivamente alargar-me em referência que me tocam de alguma maneira, ouso ainda citar, mais uma vez, o meu irmão, o Dr. Júlio Vilela, que, além de muito bom advogado, era um excelente companheiro nas paródias, um bom fadista, que tocava viola e que cantava bem o samba. Era homem que sabia estar bem em qualquer palco, companheiro solidário de toda a gente, homem que gostava da mesa, onde apreciava um bom vinho e a boa comida. Foi importante para os nossos Bombeiros e para o Sport Clube da Régua. Todos o disputavam para sua companhia. Parece-me ficarem bem aqui, estas referências aligeiradas.

Outra citação que, aqui, também não ficará mal de todo, embora por motivos menos elogiosos, é aquela que vou fazer a meu cunhado Manuel Carlos Pereira, o Lalá dos seus amigos e da família. Ele, meio amalucado, foi possuidor de um espampanante Ford V8, que, na época, era um automóvel quase revolucionário. Este meu cunhado fartou-se de leviandades. Foi um autêntico “terrorista”, quando, pelas ruas da Régua, passava a toda a velocidade, amedrontando os reguenses e pondo a GNR a olhar para o lado, para não ver o V8 a roncar por ali fora.

Enfim, talvez muitas outras pessoas merecessem  ser referidas. Os casos que citei, foram os que me vieram à mente de imediato. Outros me saltariam, se mais tardasse em encerrar esta memória. Por exemplo, de súbito, vieram-me ao cima as facécias do Rebelo, popularíssimo funcionário da Casa do Douro, ao pé e quem ninguém conseguia manter-se sério. Tornou-se célebre pelos seus despachos “tribunalíceos”, cheios de humor e de curiosidade, ditos de viva voz, com toda a ênfase e  seriedade. Foi uma pena não haver na altura, os gravadores com a mesma facilidade de hoje, assim se perdendo intervenções que “escangalhariam” qualquer reunião de parodiantes.

De quem me terei esquecido?... Lamento, mas tenho já as minhas naturais limitações, que a minha memória já não é o que sempre foi. Mas, para fazermos um pequeno retrato dos meus tempos na Régua, como éramos e o que fazíamos,  creio que já chega. Ficaram as lembranças de um tempo, com preocupações diferentes das de hoje, com modos de viver mais restritos e menos abertos. A vida de hoje pouco tem a ver com a da década que claramente delimitei. Os avanços tecnológicos foram imensos, a televisão, a penicilina, os aviões a jacto eliminaram os de hélice. Até o tradicional comboio, suporte de muita e muita  gente, foi praticamente eliminado pelo automóvel, embora com algum proteccionismo de políticos e a força dos industriais do sector, assim o individual se sobrepondo ao colectivo, ignorando, disparatadamente, o maior custo individual  dos transportes e a sua menor rentabilidade. Porém, hoje somos mais livres e os horizontes mais extensos. Coisas para meditar… Ou não será assim?...
- Abeilard Vilela, Fevereiro de 2013.

Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de texto do Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013.. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.    

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A Bem da Humanidade

A relação do homem com o fogo remonta a tempos milenares. A sua descoberta pelos nossos antepassados garantiu-lhe a sua e a nossa sobrevivência e assim se abriram caminhos novos para a humanidade. Quando a vida começou no Mundo, o fogo era uma criação divina. Conta a mitologia grega que Prometeu roubou aos deuses o segredo do fogo e o deu ao homem para tornar a vida mais confortável. Por tal atrevimento, Prometeu foi severamente castigado, mas permitiu ao homem libertar-se das trevas.

O homem bem pode agradecer a ajuda de Prometeu, que lhe possibilitou um horizonte de esperança. Se o seu semelhante primitivo era frio, agressivo e hostil, a nova geração de humanos tornou-se mais afectuosa e com mais tempo para a convivência social, que, com as centelhas do fogo, nele despertam grandes paixões amorosas e românticas. O amor foi a sua espécie de fogo que os nossos ancestrais descobriram e hoje, quando os poetas falam do fogo devorador do amor ou das chamas que ardem sem se ver, não podemos ignorar a importância do fogo na vida humana.  Ao lado do outros elementos -  terra,  ar,   água -   o fogo tornou-se, em certa medida, o   mais poderoso de todos. Ele é, por si só, capaz de originar o mal, de se tornar numa ameaça à segurança e à tranquilidade do homem e até de causar destruição e morte.

Perante tais ameaças, o homem preveniu-se do fogo indesejado e, para o combater, apareceu o primeiro bombeiro que, diante o medo do seu concidadão, se distinguiu pelo seu espírito abnegado, corajoso e altruísta como um verdadeiro herói anónimo. Por isso, a acção do bombeio passa a atrair também os poetas, que o reconhecem como um símbolo de generosidade, de entrega à causa do bem e ao serviço de ajuda ao próximo. Depois das chamas do fogo dominadas, os poetas descobrem o bombeiro para nos seus versos evocar a gratidão e o reconhecimento. Quando todos fogem, o bombeiro avança e enfrenta sozinhos os medos e  todos os perigos para salvar bens e vidas, mesmo que tenha que morrer. O seu único lema é servir o seu semelhante.

Lembro-me de uns versos intitulados O Bombeiro que foram  escritos por Camilo Guedes Castelo Branco, um  carismático e respeitado comandante dos bombeiros da Régua, apreciado por quem sabia, ao seu tempo, como um poeta de raro talento. Se quando vestiu a farda vivenciou os dramas e as tragédias que o fogo pode causar, como poeta soube melhor sintetizar a grandeza de um Soldado da Paz: “E eis que em meio trágico do braseiro/surge a figura altiva do bombeiro/Trazendo ao colo o pequeno ser”. Esta é a mais comovente evocação da figura do bombeiro que conheço. Um bombeiro, na sua humanidade, nunca procura nenhum acto heróico para  promover a sua condição nem obter honrarias para a sua pessoa. Em cada sua missão, o bombeiro quer salvar vidas indefesas dos perigos do fogo, mesmo que para tal tenha de sacrificar a sua.

Já menos conhecidos, lembro-me de outros versos publicados nas páginas do Vida Por Vida, escritos pela D. Maria Elvira Pereira Guedes. Quem conheceu esta reguense na década de 60, e as vivências culturais na pacata vila duriense, tratava-a carinhosamente apenas por Bita. Os versos são dedicados aos Bombeiros da Régua e eles são um espelho da sua devotada admiração aos “bombeiros da velha guarda”, entre os quais o seu tio Comandante Lourencinho, que ela conheceu quando o quartel era uma velha casa, sem condições nenhumas, emprestada pela generosa Margarida Vilela, que até meados dos anos 50 ficava no início da rua dos Camilos, ou, como então se dizia, no Cimo da Régua.Eis os versos da D. Bita que os briosos bombeiros da sua terra lhe inspiraram:

“Na noite fria e brumosa
Silvo agudo rasga o ar;
É a sereia impiedosa
Que o bombeiro `stá a chamar.
E o bravo só olha os Céus
E vai em louca corrida, 
Sem se despedir dos seus,
Sem dizer um só adeus, 
Sem fazer caso da vida…
Valente Bombeiro!
És o primeiro
No bem fazer
Salvar os amigos
E inimigos,
É teu dever
Soldado da Paz,
Forte e audaz
Nobre e leal;
Tua coragem não tem rival!
Não há temor, ò guerreiro
Desse batalhão tão forte!
Se o dever está primeiro
Que te importa a própria morte?
A tua divisa é bela,
Traduz amor e bondade,
Ó bombeiro, pensa nela!
Sabeis vós o que diz ela?
- “A Bem da Humanidade”!

Para a bondosa poetisa, a divisa maior dos bombeiros é o bem que prestam à humanidade, a nós, seres frágeis a quem os fogos, em cada momento, podem levar a vida, as florestas e os bens pessoais. Confesso que estes simples versos me encantam. Traduzem a afectividade de alguém que confirma  grandeza à missão do bombeiro que é reconhecida  não pelos  actos heróicos, mas pelo seu serviço ao bem comum.

Na luta do bombeiro contra o fogo, o bom bombeiro acabou por se tornar num exemplo de cidadania, solidariedade e fraternidade no Mundo egoísta, mais expectante com os avanços das modernas tecnologias do que com a sobrevivência e a felicidade do ser humano no Mundo em que hoje vivemos. Mas creio que ainda são os poetas que atiçam as centelhas de um novo fogo e, assim, iluminam a vida de um homem singular que, para lá dos nossos olhos, faz mais do que apagar fogos! Na verdade, são os bombeiros, heróis sem rosto e sem nome gravados na galeria dos notáveis que, desde a minha infância, povoam os meus sonhos como seres especiais e únicos, que na sua luta abnegada por um inquebrantável ideal, apenas trabalham para o Bem da Humanidade!

- José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Junho de 2013

*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras actividades  escrevendo também cronicas que registam neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.

Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagem de JASA. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Ser bombeiro

Com apenas doze anos, entrei para sócio dos nossos Bombeiros, então instalados na Rua dos Camilos, com o intuito de frequentar a sala de jogos. Convivendo diariamente com os bombeiros, desde o quarteleiro Zé Pinto ao Comandante Lourencinho (como era conhecido), passando pelos irmãos Castelo Branco, todos fizeram nascer em mim a veia voluntária que ainda hoje possuo. Éramos uma família e eu sentia-me em casa.

O patrão Álvaro e o Manuel Carteiro eram os meus companheiros na ida ao futebol, algum tempo ainda no Campo das Figueiras e depois já no Artur Vasques.

Situando-me na época, recordo o incêndio da Rua de Medreiros e da Casa Viúva Lopes, onde faleceu o João dos Óculos, como era conhecido.

Vivia-se a luta pela conclusão do novo quartel, na Avenida Sebastião Ramires, projeto do mestre pedreiro Anastácio, que chegou a vender bens pessoais para concluir a sua obra que ainda hoje perpetua a sua arte e também a sua memória.

Acompanhei e participei nesta campanha para a construção do novo quartel que foi feita ao longo de uma década. Realizavam-se cortejos, peditórios, festas e até bailes que chegaram a rivalizar com “O Carolina” de Vila Real. Os reguenses entregavam-se entusiasticamente aos cortejos alegóricos, de destacar os Irmãos Clemente e o mítico Figueiredo, que, montado no seu alazão, atraía e entusiasmava grandemente a população e os seus visitantes.

Foi a partir daqui que os nossos bombeiros ganharam fama, sendo considerada uma das melhores corporações do país. O mérito deve-se ao Comandante Cardoso e à presidência de Júlio Vilela, que integrava na sua direção pessoas de grande valor como o Baptista, também fundador do Jornal Vida por Vida, entre outros.

Mais tarde, em 1974, o então presidente da Câmara Municipal e também Presidente da Assembleia dos Bombeiros, Manuel Gouveia, convidou-me, segundo ele mesmo, por indicação do Manuel Montezinho, então secretário da Direção. É claro que aceitei de imediato e até lhe lhe sussurrei que desejava fazer mais do que o exercício do cargo de diretor impunha. Garantiu-me o seu total apoio e o convite foi oficializado em janeiro de 1974, com a tomada de posse no dia catorze desse mesmo mês.

O desejo de aumentar o quartel dos bombeiros era uma prioridade. Para tal, impunha-se a aquisição de uma casa vizinha, pertencente à EDP. Dada a minha boa relação com alguns responsáveis desta empresa, especialmente com o chefe das expropriações, Manuel Monteiro, consegui a aquisição da propriedade gratuitamente. Em simultâneo, o meu amigo Caveiro, topógrafo da ITEL, fez o respetivo levantamento, também graciosamente.

Em abril de 1974, surgiu a Revolução dos Cravos e com esta o saneamento do Presidente da Câmara, que veio a ser substiuído pelo Dr. Cândido Bonifácio. Foi no mandato deste amigo que numa reunião de todas as Câmaras do distrito de Vila Real, presidida pelo Dr. Montalvão Machado, tive a oportunidade de apresentar a pretensão do alargamento do quartel dos Bombeiros. O Gabinete de Estudos de Vila Real comprometeu-se a fazer o projeto, através do seu diretor, Engenheiro Arménio.

Também presente, na reunião, estava o Engenheiro Valente, que garantiu desde logo dar provimento não só a este projeto de urbanização, mas igualmente a outros dois por mim apresentados: as obras do parque desportivo do Clube de Caça e Pesca e a construção das piscinas termais das Caldas do Moledo. Todas estas obras foram financeiramente contempladas.

Todo o desenvolvimento da obra do quartel foi da responsabilidade do Manuel Dias Montezinho, então secretário da Direção dos Bombeiros, devidamente apoiado pelo fiscal, Engenheiro Né.

Em janeiro de 1977, tomei posse como vereador da Câmara Municipal. Assim, tive a oportunidade de contatar com uma equipa de técnicos do Fundo de Fomento de Habitação que na altura se deslocaram à Régua para dar seguimento à construção do Bairro Verde. É a este organismo do Fundo de Fomento de Habitação, com sede em Lisboa, que eu me dirijo, alguns dias depois, para concorrer à construção de um bairro social para habitação dos nossos bombeiros. Inteirado da viabilidade, foi-me recomendado dirigir-me à sua Delegação do Norte, no Porto, onde tudo acabou por ser tratado.

No dia um de agosto de 1980, por despacho do Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, é autorizada a comparticipação de trinta mil contos aos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua, destinada à construção de trinta fogos. O auto de construção é assinado em outubro do mesmo ano, pela firma José Ermida Lopes e Irmão e pelo secretário dos bombeiros da Régua, Manuel Montezinho. Esta obra, que arrancou em janeiro de 1981, paralisou ao fim de dez meses, o que obrigou a Direção dos Bombeiros a tomar posse administrativa da mesma para proceder a novo concurso. É a firma Eusébio e Filhos que assume a construção do bairro, então já adjudicada por quarenta e cinco mil contos. Salinte-se a disponibilidade do Engenheiro Né, não só enquanto fiscal da obra, mas também pela colaboração em diversos casos e situações problemáticas que esta construção implicou. Esta só viria a ficar pronta em 1984, ano em que fui afastado da Direção, e entregue aos seus legítimos utentes apenas cinco anos depois...

Lamento não ter podido completar tudo aquilo a que me propus. Congratulo-me, no entanto, por, para além das obras citadas, ter podido ainda, durante o meu mandato, participar na criação da Fanfarra, mérito do amigo António Dias; na criação do museu, mérito de Pedro Macedo, e na reativação da Biblioteca, entre outras atividades que ficaram pelo caminho...

Enquanto Presidente da Direção, quero aqui deixar o meu agradecimento a todos os colegas que em muito contribuíram para todo o trabalho executado.

Como sócio, quero continuar a manter a minha grande amizade aos nossos bombeiros.
- António Bernardo Pereira, antigo Presidente da Direcção


PROBLEMA RESOLVIDO EM CASA
Desde criança que sou admirador e amigo dos Bombeiros Voluntários. O meu tio mais velho, Eduardo Menezes, irmão de minha mãe, era bombeiro e foi, durante alguns anos, comandante dos bombeiros de Alpiarça.

Uma vez por ano, na véspera do 5 de Outubro, vinha jantar a casa de meus pais, onde ficava para no dia seguinte comemorar com os seus correligionários a implantação da República. Quando conheci o nosso Comandante Carlos Cardoso, alto e aprumado, lembrava-me muitas vezes do meu tio.

Ao ser sondado para concorrer às eleições como candidato a presidente da Direção dos Bombeiros Voluntários aceitei imediatamente com alegria, ainda que sentido a responsabilidade do esforço que tal tarefa, a concretizar-se, me exigiria. Se é verdade que tinha trinta e poucos anos, pensava também que já era pai de quatro filhas e advogado com uma intensa atividade.

Fui eleito e comecei logo a trabalhar com dedicação e empenho. Queria ser digno da memória do meu saudoso tio Eduardo e dos meus ilustres predecessores doutor Júlio Vilela, Vieira de Castro, Camilo Araújo Correia, Abel Almeida e tantos outros.

A Direção a que tive a honra de presidir, teve logo a coragem de acabar com uma escondida salinha de jogo que funcionava na sede da nossa associação.

Foi uma realidade com a qual não contava até ao dia em que uma senhora me falou do vício do seu marido, que eu estimava, com verdadeira amizade, e acrescentava que não percebia como é que uma pessoa, “como o senhor doutor”, referindo-se a mim, podia permitir uma mesa de jogo nos Bombeiros. Não queria acreditar no que ouvia mas depois de informado, convenci-me que era verdade. Na reunião seguinte, coloquei o problema e todos os dirigentes acordaram a por termo a tal prática. Uma Associação tão respeitável e respeitada como a nossa não podia viver com receitas desta espécie.

Tivemos sócios que não concordaram com a nossa decisão, invocando que tais proventos faziam falta aos Bombeiros mas defendemos que a Associação não podia também permitir uma casa de prostituição para os arranjar. O dinheiro dos “amigos”, que se entretinham a gastá-lo no jogo, fazia mais falta nas suas casas para as necessidades dos filhos e das esposas. Assim se acabou com o jogo ilícito na sede dos Bombeiros.

A partir daí, a nossa Associação tornou-se mais forte e realizou algumas obras que, até então, pareciam um sonho longínquo: a ampliação do quartel dos Bombeiros e sede da Associação e o bairro dos Bombeiros. Com esta posição da Direção a nossa Associação tornou-se mais humanitária e mais próxima de todos os reguenses.

Vila Real, 16 de Novembro de 2012
- Aires Querubim de Meneses Soares
Clique  nas imagens para ampliar. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Actualizado em Dezembro de 2013. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 21 de Novembro de 2012.